IGREJA E DENOMINAÇÃO PORQUE TANTA DIFERENÇA

terça-feira, 29 de março de 2011

Religiões Comparadas

Religiões Comparadas

O primeiro passo para responder qualquer pergunta é delimitar o objeto da nossa investigação. O curso de Religião Comparada deve começar naturalmente com a pergunta 'O Que É Religião?'. Para responder a essa pergunta, observamos o objeto; o objeto no caso, entretanto, é complexo, porque o próprio nome é ambíguo. A palavra religião pode ser usada de um modo, digamos, elástico. Por exemplo: Em que medida a prática filosófica de Sócrates constituem uma religião? Em que medida o budismo é uma religião? O budismo é muito diferente do Cristianismo, que é por sua vez muito diferente do Hinduísmo. O que há de mínimo comum entre todas essas diversas tradições, que permite que as chamamos de religião? Quando o objeto é muito indefinido, começamos a esmiuçar a palavra que designa o objeto. Religião tem sua raiz em religar. Supõe-se que a religião é algo que liga ou religa o ser humano a uma outra coisa. Então temos o primeiro ponto comum de todas as tradições que podemos chamar de religiões: todas elas possuem mitos, símbolos ou doutrinas segundo as quais o ser humano, de algum modo, ou no passado, ou num estado superior, ou num outro plano, está intrinsecamente ligado a realidades que transcendem o plano terrestre, e que de algum modo ele se esquece ou rompe essa ligação, e que a religião existe justamente para que essa ligação se torne efetiva. Todas as religiões dizem que o ser humano é um ser que existe numa encruzilhada entre dois planos distintos: o plano terrestre sobre o qual o ser humano pode agir – um plano sujeito à intervenção humana -, e um plano celeste, que o ser humano não pode modificar, mas que pode modificar o ser humano. Este é o primeiro traço comum entre todas as tradições religiosas: dizem que se o homem tomar tal forma (se tornar um cristão, hindu, budista, etc), ele será transformado por um plano que transcende a intervenção humana.

Se observarmos a história humana, veremos que a religião nunca esteve ausente na sociedade. Nunca existiu uma sociedade humana de que temos notícia que não possuiu uma religião. Este é outro traço distintivo da religião: a religião é universal – sempre esteve com o ser humano. Outro traço: todas as religiões se dizem necessárias. Todas elas dizem ao homem: você precisa disto; se você tentar viver sem isto, sua vida não será completa. De onde vem esta alegação de necessidade? Vem de uma concepção na natureza e do mundo que é comum a praticamente todos os povos humanos: a natureza não frustra. Por exemplo: para cada espécie animal existe algumas espécies de alimento que nutrem e satisfazem as necessidades alimentares daquela espécie. Na natureza toda inclinação ou tendência natural de um ser tem um fim próprio que é real e existente; se esse fim não fosse existente, a natureza daquele animal seria incongruente com a realidade e ele não existiria. Os peixes respiram na água porque existe água. Se não existisse água, não se poderia pensar na existência dos peixes. A necessidade da religião surge exatamente de algumas necessidades humanas que estão presentes, e que não são satisfeitas por outras coisas. Essas necessidades surgem, derivam de 3 conceitos, possíveis para o ser humano e impossível para os outros animais. Os outros animais não têm religião porque não tem os conceitos que tornam a religião necessária para eles.

O primeiro conceito é o conceito de Absoluto. Percebemos que para que uma coisa exista é preciso que outra coisa exista, e para que esta segunda exista, seja preciso a existência de uma terceira coisa, que dependa de outra coisa, às vezes numa série indefinidamente longa. Se todos os membros de uma série dependem, a série inteira é dependente; e precisa depender de uma outra coisa que não depende da série ou de algum seu elemento. Por exemplo: o coelho depende do alface; mas o alface não depende do coelho: depende dos minerais do solo, da água, do clima, e esses dependem da configuração do sistema solar, e etc. Em dado momento tem-se de chegar num primeiro ente do qual todos os outros dependem – daí se retira o conceito do Absoluto: o que significa 'solto de', o que não está preso a nada, o que não depende de nada. Nós aplicamos este conceito a vários campos da vida. A nossa maneira de agir em determinada situação depende das circunstâncias particulares da situação; e numa certa medida, modulamos o nosso modo de agir segundo a situação, as circunstâncias concretas; em dado ponto, nos deparamos com uma situação em que nos dizemos ''Isto eu não faço!''; independente de qual seja a situação, não fazemos aquilo: chegamos num critério absoluto da nossa própria ação: todas as nossas ações dependem desse critério, mas ele não depende de nenhuma de nossas ações particulares.

O segundo conceito é o conceito de Justiça. Quando uma pessoa nos agride ou nos ofende, nós nos perguntamos: isto é justo ou injusto. O sujeito seja em casa e a mulher atira nele um garfo; ele se sente ofendido; em seguida, ele se recorda que era o aniversário do casamento deles – o sentimento dele muda. Uma coisa é a mulher lhe atirar um garfo sem motivo; outra coisa é ela lhe atacar porque esqueceu uma data importante para ela e para o casal. A primeira é uma atitude sem motivação; a segunda, mais ou menos justa: a aceitamos. O conceito de Justiça está embutido na mente humana. Algumas coisas que nos são dolorosas, as pensamos como injustas; outras, naturalmente como justas. Ambas as experiências podem ser dolorosas, mas elas são diferentes, e nos causam sentimentos diferentes por causa do conceito de Justiça.

O terceiro conceito é o conceito de Morte – ou cessação definitiva de toda atividade corpórea. Nenhum animal possui o conceito de morte. Quando um animal morre outro bicho da mesma espécie acha que ele dormiu; quando começa a desaparecer, ele não entende o que aconteceu. Como o cachorro do dono que fica sobre o caixão – ele acha que o dono acordará, sairá dali em dado momento. Mas o ser humano é capaz de perceber que existe uma modalidade de cessação que é irreversível.

Esses três conceitos geram os três tipos de inclinações religiosas: a curiosidade intelectual, o amor pelo bem e o temor do sofrimento. Toda pessoa religiosa tem uma religião por um desses motivos, por dois desses motivos ou por todos eles. Ou o sujeito pratica a religião porque tem medo do Inferno o de uma sucessão indefinida de reencarnações; ou porque deseja um paraíso ou uma reencarnação, ou porque ele quer saber o que é esse Absoluto – pelas três em conjunto. Se toda religião se apresenta como necessária, é simplesmente porque ela corresponde às inclinações que surgem no ser humano diante destes três objetos: Absoluto, Justiça e Morte; tanto que é muito comum as pessoas se converterem a uma religião ou porque estiveram diante da morte – a própria o a de outrem -, ou porque sofreram uma injustiça muito grande ou testemunharam uma injustiça muito grande, ou porque se ficaram fixadas na idéia do Absoluto. Vejamos que Absoluto é uma expressão negativa: não afirma nada de direto e positivo sobre o objeto – só fala que ele não é relativo, que não depende de outras coisas, mas não nos explica o que ele é. Então a religião existe justamente para satisfazer os anseios humanos em relação a esses três conceitos. Ninguém realmente se converte para uma religião ou realmente assume uma religião que recebeu desde a infância senão por um desses três motivos ao menos; qualquer outro motivo é considerado ilegítimo pelas próprias religiões – ou pelo menos insuficientes. Por exemplo, quando alguém diz que tem uma religião porque toda a sua família foi daquela religião – é um motivo legítimo, mas insuficiente: ele tem um contato muito mínimo com sua religião. Mas quando um desses três conceitos se apresenta claramente para ele, ele descobre um motivo suficiente para ser religioso. Se as religiões existem então para satisfazer essas três necessidades, ou as necessidades em relação a esses três conceitos, os traços comuns das religiões derivam justamente desses três conceitos comuns.

Evidentemente, a primeira função da religião é dar para o sujeito uma idéia do que é esse plano que transcende o plano terrestre. A primeira coisa que a religião diz ao sujeito é: eu vou levar a esse plano, vou te conduzir para plano do Absoluto onde não há injustiça nem morte.

Então o primeiro elemento constitutivo das religiões é uma via. Toda religião tem de dispor de um caminho para que o homem, em vida, tenha alguma experiência do que é o outro mundo. Todas as religiões também têm em comum isso: elas vão dizer que o ser humano possui, no seu interior, no seu núcleo espiritual, um órgão que é da mesma natureza que esse outro plano; e se esse órgão se ativa, ele percebe esse outro plano. Os budistas vão dizer: todos os seres vivos têm a natureza de Buda: ela só está adormecida; Jesus Cristo diz: o reino dos Céus está dentro de vós – e assim por diante. Todas elas afirmam a existência de um órgão espiritual no ser humano que ele tem de desenvolver; desenvolvendo-o ele começa a perceber o outro plano tal como ele é.

Entretanto, explicar o que é esse outro plano é um enorme desafio para a linguagem humana. Mesmo o sujeito que viu o Paraíso, Deus, os anjos, como ele explicará como é isso? Então temos mais um ponto em comum entre todas as religiões: todas as religiões fazem uso do discurso simbólico, de símbolos para explicar esse objeto transcendente. É a mesma coisa de tentar explicar o que são as cores para um cego de nascença. Será preciso fazer comparações com coisas que ele percebe – senão ele não vai saber o que está sendo dito. Por exemplo: podemos comparar as cores a estados emocionais: vermelho é paixão, intensidade – então o cego terá alguma idéia do que é vermelho, através de um símbolo.

Uma coisa a qual teremos de nos acostumar no decorrer deste curso é justamente aprender a interpretar os símbolos das religiões. Haverá uma aula sobre o hinduísmo: teremos de entender os símbolos que os hindus usam para falar do outro mundo; em seguida, os símbolos que os budistas usam, e assim por diante. Começaremos já, para tanto, a usar um discurso simbólico.

Para explicarmos o que é religião utilizaremos um símbolo que é quase universal – talvez as religiões indígenas não o usem para explicar o que é religião, mas sei que o judaísmo o usa, o cristianismo, o islamismo e o budismo usam -: compara-se a religião a um anel, no qual está incrustada uma jóia; essas religiões dirão que a parte fundamental, ou essencial da religião, é a arte de lapidar a jóia. O primeiro passo para fazer o anel é lapidar a jóis; essa jóia é um símbolo desse órgão espiritual que existe no ser humano, pelo qual se percebe o outro mundo, o transcendente; na medida em que o ser humano a lapida, as suas propriedades intrínsecas: a capacidade de refratar a luz e mostrar todas as suas modalidades que aparecem - na jóia bruta isso não aparece. Esse primeiro elemento da religião, que é a via espiritual, consiste na arte de lapidar a jóia do órgão espiritual; uma vez lapidada, o sujeito tem uma percepção clara do que é o outro mundo. Podemos associar isto ao Mito da Caverna de Platão: quando o sujeito sai da caverna e vê o mundo real, isso é o órgão espiritual percebendo o plano do transcendente. Evidentemente nenhum de nós mora em uma caverna onde estamos acorrentados, mas a caverna representa o mundo terrestre, e o mundo real, o do transcendente. Mas depois que ele vê aquilo, ele tem que voltar para a caverna: simplesmente lapidar essa jóia e acordar o órgão espiritual não é suficiente para todas as necessidades espirituais humanas. Depois que ele volta para a caverna, ele tem de explicar para os outros o que está acontecendo, e ele mesmo tem que viver ali. No entanto, o que acontece quando alguém que sai de um ambiente muito claro volta para um ambiente escuro? Ele enxerga pior do que aqueles que já estavam lá. Portanto, a religião, além de acordar esse órgão espiritual, ela tem de dar meios para que o sujeito, quando esse órgão adormece, haja de maneira eficaz neste mundo: tem de dar um suporte a esse órgão espiritual. Não basta a jóia lapidada: ele precisa criar um engaste perfeito para encaixar esta jóia a um anel e ele ficar com ele todo o tempo. O círculo do anel e o engaste representam o conjunto de atributos que o sujeito tem de ter para que ele não perca definitivamente o contato com essa jóia ou o contato com esse mundo: ela é o meio de ligação entre a percepção do transcendente e a ação neste mundo. Por exemplo: o sujeito pratica todas as coisas da mística, vê Deus, os anjos, etc, e depois ele volta ao estado normal; quando ele volta ao estado normal, ele pára para pensar no que ele viu. Podemos compará-lo ao sujeito que vê um acidente de carro: ele capta o que aconteceu, e depois do efeito da batida ele senta e procura expressar aquilo para ele mesmo: pensar no que aconteceu. O pensamento é distinto da percepção contemplativa que ele teve. Mas ele pode pensar de um jeito tal que ele mesmo se confunde. Isto pode já ter acontecido com qualquer um de nós: quando narramos para nós mesmos ou para um outro, nos confundimos sobre o que aconteceu por causa da nossa narrativa. Se isso acontece com eventos que são terrestres, e com experiências que são compartilhadas por outros, muito mais isso acontece com experiências de tipo místico. Quando o sujeito após uma tal experiência vai explicar o que houve para si mesmo, na própria narrativa ele se confunde.

Então toda religião precisa de uma doutrina formal que possua as chaves básicas para explicar em que consiste a experiência que se teve. Essa doutrina é um instrumento para a inteligência discursiva. Segundo: às vezes, mesmo tentando explicar aquela experiência de acordo com a doutrina, às vezes não se entende alguma coisa: se confunde mesmo coma doutrina. Assim, além da doutrina, é preciso um outro instrumento para a inteligência, de modo que auxilie quando, mesmo com o auxílio da doutrina, o sujeito seja incapaz de explicar-se o que aconteceu.

Quanto a essas experiências, expliquemos que essa experiência pode se dar imaginariamente, na forma de um entendimento – um insight -, na forma da intensidade ou profundidade com o que sujeito é atingido por uma experiência comum (exemplo: o sujeito vê um amigo morrer, e ele percebe que de alguma forma o seu amigo continua); não é preciso que seja exatamente uma visão. Todo mundo tem algum nível de experiência mística; é claro que nem todos se dedicarão a desenvolvê-la, até porque ela é uma vocação como qualquer outra. Mas todos têm, em alguma medida, alguma experiência que estabelece padrões definitivos ou absolutos para o seu comportamento.

Expliquemos também que uma mudança de plano, exatamente, é uma ascese: uma experiência que conduz, ou que produz uma ascese, uma transposição de plano; de repente o sujeito percebe que está lidando com um plano que é intrinsecamente sagrado: que está separado da experiência comum ou convencional.

Por um lado, ele tem a doutrina para lhe explicar o que é aquilo; por outro, quando ele não entende, ele tem uma qualidade que é justamente o senso do sagrado.

O senso do sagrado consiste no seguinte: o sujeito tem uma experiência mística; depois que passou a experiência, ele se confunde, especulando com a doutrina, conversando com as pessoas, ou vivendo a vida, e aí entra em jogo o senso do sagrado: o fato dele estar confuso, ele diz a si próprio então, não invalida a sua experiência – só mostra que ele não está mais no nível de sua experiência. Resta para ele duas atitudes: refutar a realidade da experiência como uma ilusão, ou dizer para si mesmo que é ele que é então em certa medida uma ilusão em relação a experiência anterior: que está inferior a ela. A doutrina e o senso do sagrado são os dois suportes para a inteligência humana em relação ao plano do transcendente.

Mas não basta a inteligência; não basta que a inteligência do sujeito mantenha um contato com o transcendente mesmo quando a experiência passou: o ser humano ão é só inteligência: ele é também vontade. O tempo todo queremos alguma coisa. Eu estou dando aula porque quero alguma coisa; vocês estão aqui porque querem alguma coisa. A vontade humana está operando constantemente; e é preciso que essa mesma vontade não esqueça justamente a experiência do transcendente – é preciso que em alguma medida ela queira essa experiência e o objeto dessa experiência todo o tempo. Ninguém quer algo sem possuir esse algo em medida mínima. A primeira vez que experimentamos o bolo, queremos ver como o bolo é; experimentamo-lo de maneira indiferente – uma experiência genérica -; após experimentá-lo, see gostamos, queremos mais do bolo. A vontade pressupõe uma dose mínima inicial. Toda vontade é uma vontade de aumento, de crescimento. É preciso que a religião dê para o sujeito algumas ações que dêem essa dose mínima para a sua vontade: esses são os ritos.

Ritos são um conjunto de símbolos que o sujeito opera, e naquela operação ele recebe uma dose mínima do objeto que ele deseja no plano do transcendente. É preciso que mesmo nesse plano terrestre e de separação – quando ele não está com a experiência do transcendente -, ele participe desse plano, também com sua vontade; que também a sua vontade receba algo desse transcendente na sua vida cotidiana: esses são os ritos. O rito é um símbolo operando: a operação de um símbolo. Existe uma expressão famosa: o símbolo é um rito cristalizado, e o rito é um símbolo vivenciado. E de fato, um rito é vivenciar um símbolo; ele contém de forma fixa toda a potencialidade de um rito. O rito tem uma validade intrínseca derivada primeiro de sua retidão – ele se chama rito justamente por isto – simbólica, segundo pela beleza e bondade intrínsecas do objeto do rito. Ou seja. Mesmo quando não entendemos porque uma coisa é boa, mas sabemos que é boa, nós a desejamos, nós a amamos. Por exemplo: entendemos de que um objeto é símbolo percebendo-o e comparando-o com outros semelhantes ou análogos. Quem já não viu o tremendo escândalo que um porco faz quando é abatido e quem não viu um carneiro no momento do abate? O porco faz um escândalo monstruoso, uma gritaria horrenda – seria melhor matá-lo a tiro! Mas o carneiro, basta um toque e ele vira a jugular para ser morto. A morte do carneiro é um símbolo da mansidão sacrificial, portanto. Os judeus sacrificam carneiros em algumas festas para se recordar eles mesmos da atitude que têm de ter perante a Deus. Por si, o carneiro já é a imagem da mansidão; por isso, Deus chega para os judeus e diz para eles sacrificarem um carneiro a fim de se recordar, de reviver a sua mansidão. O conhecimento do símbolo é apreendido primeiro pela doutrina; o rito sem a doutrina não fica senão com a beleza intrínseca; as pessoas mais sensíveis à beleza poderão perceber que há um mistério por trás disso: que Deus age por ali – mas mesmo assim precisarão do conhecimento doutrinal. Às vezes essa motivação, somente a beleza intrínseca do rito, é suficiente para motivar o sujeito a uma via pela qual ele experimentará esse mistério; depois, quando ele olhar novamente para o rito, ele o perceberá finalmente como uma imagem do mistério. A doutrina serve mais ou menos para antecipar abstratamente o que a experiência mística revelará para o sujeito: ele prepara e indica mais ou menos o que ele experimentará se se dedicar à mística.

A via mística, em última análise, está inscrita no coração dos seres humanos; mas quando o sujeito viverá a vida mística? Talvez somente a viva na outra vida. Mas em princípio – e é o testemunho de muitos místicos -, viver a vida mística só depende de uma coisa: querê-la muito e sempre; tanto que todos os métodos das vias místicas consistem em métodos de fazer o homem se recordar e querer isso todo o tempo. A princípio a via mística está aberta a todos; mas na prática nós quase sempre não nos dedicamos a acumular essa força e nos dedicamos a outras coisas: a esse círculo de qualidades. Nós preparamos o anel e deixamos depois para que Deus lapide a jóia. Doutrina, senso do sagrado, ritos, etc - nos preparamos com isso e deixamos para que Deus, quando quiser, lapide a jóia. A religião oferece essas duas alternativas. O místico é um religioso que tem pressa: não quer deixar para viver a via mística somente depois da morte.

Outro aspecto do rito que tem um apelo intrínseco é o aspecto da bondade. Quer dizer: o rito é feito para muitos. Como quando o Cristo fala na Santa Ceia: este é o meu sangue que é derramado por vós e por muitos para a salvação. O elemento de bondade daquela ação é muito evidente: então todo rito também existe como recordação de uma bondade, e a bondade tem também um apelo direto para a vontade humana.


Mas também não basta só a vontade como qualidade, porque também temos, além da inteligência e vontade, sentimentos. E os sentimentos têm uma característica especial: nós não mandamos neles. Então além da doutrina e dos ritos, existe um terceiro plano em toda religião que é o plano dos mandamentos: todas as religiões impõem um limite à ação humana e dizem: não interessa o que você estiver sentindo, em tal ação faça isto ou não faça aquilo. Temos no total, afinal, seis elementos que existem para manter o sujeito como que ligado ao transcendente mesmo quando ele não está na experiência direta do transcendente: o senso sagrado e a doutrina, que se referem à inteligência, a bondade e a beleza do rito, que se refere à vontade, e os mandamentos positivos e negativos, que se referem aos mandamentos. Todas as religiões possuem mandamentos positivos como negativos. O islamismo, por exemplo: ''faça 5 orações ao dia''. Todas as religiões mandam que façamos algumas coisas necessariamente, e que não façamos outras necessariamente. Os mandamentos, diferentemente do que costumamos pensar em geral, não existem em princípio como restrições à vontade, mas como restrições aos sentimentos – porque às vezes temos o sentimento, por exemplo, de que só ao matar determinada pessoa seremos felizes (às vezes até é um sentimento justo, mas geralmente não é). O sentimento não diz por si se ele é justo ou injusto.

Então esse será o critério pelo qual investigaremos cada uma das religiões: 1. Em que consiste ou quais são as vias espirituais que a religião oferece (isso se refere anteriormente à lapidação da jóia ou ao despertar do órgão espiritual); 2. Qual a doutrina dessa religião; 3. Quais são os seus ritos; 4. Quais são os seus mandamentos.

Evidentemente, as maiores semelhanças entre uma religião e outra se darão no plano da via espiritual, uma vez que a via não é senão o encontro do ser humano, enquanto espécie, com o Absoluto. Já a doutrina, os ritos e os mandamentos são de certo modo uma tradução desse encontro no plano terrestre. É claro que essa tradução pode se dar em diversas línguas. As diferenças entre a via espiritual hindu, e a via espiritual cristã, por exemplo, serão muito pequenas; mas a tradução do que é visto ou contemplado nessa via em termos doutrinais será muito diferente numa e noutra. Porque a doutrina é somente um símbolo do que foi experimentado; trata-se de que a mesma experiência pode levar as expressões doutrinais muito diferentes. Evidentemente essas expressões doutrinais não podem absolutamente diferentes, porque afinal se referem ao mesmo objeto – mas elas podem se parecer muito diferentes, assim como palavras em diferentes idiomas que significam o mesmo objeto (a palavra que designa pedra em árabe e em russo, por exemplo). Como vamos entender a doutrina de uma religião distante de nós? Ora, do mesmo modo como aprendemos uma língua que nos é desconhecida. Se chegamos a Liliput e não temos a menor idéia do que as palavras significam, como percebemos o seu significado? Pela relação entre as palavras: o sujeito fala pedra e aponta a pedra, por exemplo. Sabemos que nunca um sujeito que fala a palavra pedra na língua liliputiana poderá dizer verdadeiramente que a pedra é mole. Porque em Liliput, como em todos os outros lugares, as pedras são duras, e nós sabemos disso. É pela ligação entre as palavras que começamos a captar o sentido das palavras numa língua desconhecida. Do mesmo modo, numa religião, se queremos entender e comparar a doutrina de uma com a doutrina de outra não é com um conceito isolado que a compreenderemos. Por exemplo: o conceito de Graça é um conceito muito fundamental na doutrina cristã: Deus faz certas coisas boas para o ser humano sem que esse possua qualquer mérito – somente pela sua magnificente bondade, sem haver uma reciprocidade entre o que o homem fez e o que Deus lhe faz; não é em retribuição a uma ação humana. No budismo também temos um conceito-chave para a compreensão da doutrina que é, tomado isoladamente, completamente estranho ao conceito de Graça, que é o conceito de Karma. O budista dirá que tudo o que acontece com o homem – mesmo a bênção de Deus -, é porque o sujeito fez algo num estado anterior, o karma acumulou, amadureceu, e se efetuou isso: tudo o que acontece como um efeito de uma ação praticada num estado anterior da existência. Destarte, se tomarmos somente os conceitos de Graça e de Karma isolados poderíamos dizer que não há uma ligação em comum entre Cristianismo e Budismo, porque um diz que a Realidade funciona na base da bondade divina, e o outro na base d um sistema ordenado de causa e efeito. Não dá para entender os dois conceitos se o tomarmos isoladamente. Antes, precisamos questionar por que existe o conceito de Graça no Cristianismo – este conceito deriva de que componentes da doutrina e o que ele visa explicar da Realidade -, quer dizer: ligar este conceito com vários outros conceitos doutrinais, e depois tomar o conceito de Karma no budismo, e questionar igualmente por que existe o conceito de Karma no budismo, de que princípios ele deriva, e descobrir a finalidade do conceito no conjunto da doutrina. Aí veremos, se fizermos isso, que o conceito de Karma é muito parecido com o conceito de Graça, porque têm funções doutrinais semelhantes. A comparação entre as religiões nunca pode se dar por conceitos ou atos isolados. Uma religião que permite o divórcio e outra que não permite, elas parecem não falar sobre a mesma coisa se tomarmos esses dados isoladamente no nosso estudo. Porque a religião, como um conjunto, uma totalidade, ela é exclusiva, única – essa é uma característica de toda perfeição terrestre. Como um evento terrestre, um fenômeno terrestre, a religião possui uma unicidade, e toda unicidade exclui outras unicidades. Por exemplo: o sujeito tem 100 reais no bolso: ou ele com no restaurante, ou ele põe gasolina no carro; cada uma dessas ações têm um apelo, uma positividade, mas uma exclui a outra. Se a medida do sujeito é 100 reais, ou ele faz uma coisa ou faz outra. Ele não escolhe porque uma é boa e outra é ruim, mas porque não dá para fazer as duas com essa medida. Um outro exemplo dessa exclusividade da perfeição: uma excelente catedral é um péssimo lar; uma catedral perfeita, maravilhosa, é uma casa horrível. A perfeição de catedral exclui a perfeição de lar e vice-versa, e excluem ambas a perfeição de fábrica. É impossível que um determinado edifício seja simultaneamente uma casa perfeita, uma catedral perfeita e uma indústria perfeita. A religião, como uma estrutura complexa que visa ligar o homem ao transcendente, tem também essa exclusividade: sua perfeição formal exclui a outra perfeição formal, mesmo que a outra também seja perfeita. A perfeição de uma catedral exclui a perfeição de um claustro. Ambos são elementos de uma mesma religião, mas a perfeição de um exclui a de outra. Isto quer dizer que os componentes característicos de cada religião se diferenciam maximamente – não absolutamente, vejamos bem - dos componentes da outra religião, justamente para explicitar a natureza de cada uma delas. Isto quer dizer, finalmente, que toda religião possui componentes formais que são formalmente inadmissíveis em outra religião. Como os tipos de beleza: a oriental e a negra, por exemplo. Não é possível ser ao mesmo tempo perfeitamente negro e oriental – os dois ao mesmo tempo, só imperfeitamente; ou cristão e budista ao mesmo tempo, por exemplo. As religiões podem se identificar no plano do objeto transcendente: aquilo que elas visam é o mesmo; mas não podem se identificar no plano terrestre.

Os critérios de comparação de uma religião com outra são então esses 4 critérios intrínsecos: a via – como tal religião propõe aproximar e conduzir o sujeito à experiência do transcendente -; a doutrina e o senso do sagrado – como tal religião ensina a inteligência humana -; os ritos – como tal religião educa a vontade humana -; os mandamentos – como tal religião educa os sentimentos humanos (e é por isso que os mandamentos podem diferir de uma religião por outra. Com um conjunto de mandamentos o que Deus quer não é que o sujeito se comporte de determinado jeito, mas que ele conduza seus sentimentos a uma determinada forma. E existem muitas maneiras de educar os sentimentos.) Fora isso, toda religião apresenta outros três tipos de prova da sua autenticidade. Essas provas fundamentais: a prova doutrinal, a do rito e a do mandamento – a coerência intrínseca desses três planos – são as provas essenciais, intrínsecas de uma religião; mas as religiões também apresentam provas extrínsecas ou acidentais. A primeira delas é a santidade – isto é: toda religião mostra seres humanos que são evidentemente melhores do que os outros. Uma religião sem santos é inacreditável. Toda religião tem de mostrar ao homem que se ele segui-la direitinho, ele ficará como tais santos. A segunda, que deriva imediatamente desta, é que toda religião tem milagres; qualquer religião tem uma lista imensa de orações que foram atendidas de modo sobrenatural. Cientificamente comprovados? Esta expressão é ambígua. Existem milagres provados por médicos, por exemplo, que autenticam que determinado milagre ocorreu; mas a comunidade acadêmica nunca tem uma explicação sobre o que ou o como aconteceu; a ciência diz que aparentemente aquilo violou as leis normais de comportamento das coisas – o que não quer dizer que segundo uma perspectiva científica ou filosófica mais ampla aquilo tenha uma explicação razoável -; simplesmente aquilo foi uma intervenção direta do plano do transcendente. Toda religião tem inúmeros milagres testemunhados, que não podem ser descartados ou reduzida a sua autenticação somente porque uma religião os autentica, dado que existem alguns milagres que foram testemunhados por até centenas de pessoas. A quantidade de milagres relatados às vezes é algo absurdo. Só de São Bosco existem 11 mil relatos e testemunhas de milagres diferentes – alguns deles testemunhados por inúmeras pessoas. E em geral, as religiões são muito rigorosas no seu critério para a aceitação de milagres. Geralmente as autoridades religiosas têm critérios muito rigorosos. Em terceiro lugar, a terceira prova extrínseca é a Arte Sagrada, a Arte Sacra: toda religião, no decorrer do tempo, mostra um tesouro de arte sacra que é inestimável e insubstituível. É praticamente impossível o sujeito não sentir que está no centro do universo ao entrar numa catedral medieval, numa mesquita medieval ou num templo hindu. Abramos um parênteses para falar sobre a idéia de Revelação. A idéia de revelação consiste no seguinte: um sujeito que não possui uma experiência do transcendente não pode alcançar essa experiência e simultaneamente desenvolver uma doutrina perfeita, um conjunto de ritos e um corpo de mandamentos perfeitamente coerente sozinho. A religião assim dirá que ela se origina do próprio Absoluto, ou do plano do transcendente, e não do plano terrestre. Toda religião é uma iniciativa divina. E isso é indicado pelo fato de que mesmo as religiões de caráter histórico, cujo começo histórico nós conhecemos, se originam em tempos não-históricos. O Cristianismo, por exemplo, se originou há 2000 anos atrás; mas de certo modo ele é uma continuação do Judaísmo, que começou há 3 mil e tantos anos atrás, que é também mais ou menos uma continuação da religião de Abraão, que nós não sabemos exatamente como começou. Ou o Budismo. O Budismo começou há mais ou menos 2500 anos atrás, mas ele é como uma reinterpretação do Hinduísmo, que não sabemos exatamente como começou. A origem das religiões escapa do alcance do indivíduo humano – essa é outra característica das religiões. Porque as religiões são iniciativas de um plano sobre o qual o ser humano não intervém. Todos os fundadores das religiões dizem que foi outra coisa que as fez: Cristo diz ''Eu vim para cumprir a vontade do Pai''; o profeta Mohammed diz: ''Isto aqui, o Corão, foi o anjo Gabriel que me citou, e que Deus disse pra ele''. O Buda disse: ''Isto aqui, evidentemente não é eu, porque eu estou dizendo que não existe eu''. Todas as religiões vão dizer que elas se iniciam, são iniciativas do transcendente.


Portanto, primeiramente, para entendermos uma religião precisamos entender os seus elementos. Secundariamente, é termos alguma idéia de sua história, de seus santos, de sua arte; no entanto, pela própria natureza de seu objeto, entender uma religião implica numa atitude um pouco diferente da postura de isenção a qual estamos acostumados para investigar qualquer coisa. Porque as religiões são como lugares ou mulheres dos quais gostamos: elas possuem uma unicidade. O Cristão, por exemplo, para entender o budismo, terá de imaginativamente esquecer que ele é cristão e fazer de conta que ele é um jovem do mundo budista querendo conhecer a religião dele. Senão, não há como: entender o Budismo do ponto de vista cristão é não entender o budismo; entender o Islamismo do ponto de vista budista é não entender o Islamismo, e etc. Então deveremos nos colocar imaginativamente em cada uma das aulas no lugar do sujeito da religião
em estudo. Porque a religião não é só um corpo doutrinal. Se as religiões fossem somente um corpo doutrinal, poderíamos estudar a doutrina e avaliarmos se ela é coerente, quais são seus prós e contras – mas elas não são só isso, e a coerência doutrinal não é mais do que um dos seus demais elementos, a saber o rito e os mandamentos; e mais ainda: a ordenação dos 3 elementos das religiões à Via, à experiência mesma do transcendente, é a sua essência mesma. Estudar as religiões seria como observar um casal amigo em briga: não se pode dizer simplesmente para um dos cônjuges largar o outro ou dar um conselho estéril para que um perdoe o outro – será preciso se colocar imaginativamente na situação de cada um deles para entender como eles entendem, sentir como eles sentem, o que se passou, e ajudá-los afinal. Na verdade, isso é exigido justamente para que não cheguemos à conclusão de que todas as religiões são iguais e portanto sentimos o mesmo por cada uma delas. Se elas fossem iguais, não precisaríamos fazer esse esforço imaginativo. É justamente porque elas são intrinsecamente diferentes, devido à sua unicidade respectiva, e porque são tão coerentes, cada uma delas, que excluem a possibilidade de serem a outra, que precisamos fazer esse esforço – porque as religiões são universos estanques. Não existe sincretismo tão competente quanto cada uma das religiões, em termos espirituais. Se não fosse assim, se elas fossem todas iguais, seria simples: na segunda-feira, seríamos budistas, porque é o dia sagrado dos budistas; no sábado judeus, porque é o dia sagrado dos judeus; no domingo cristãos, na sexta islâmicos, etc. Se elas fossem a mesma coisa, seria possível fazer da postura imaginal uma postura vivencial, o que não é possível. Se assim o fizermos, não seremos de religião nenhuma. E ser um pouco de cada religião, como já demonstramos, é não ser de modo algum religioso, dado o caráter unitivo das religiões. Ser um pouco gente, um pouco pedra, um pouco alface, não é ser nem gente, nem pedra, nem alface: é ser o Incrível Hulk. É a mesma coisa que entendermos uma ciência e a profissão derivada daquela ciência: uma coisa é entender a Medicina, outra entender ser médico. Para entender a profissão de médico, é preciso se colocar imaginativamente em sua posição; já para entender a Medicina, a ciência médica, não. A ciência médica é só uma parte do ser médico – como a doutrina é apenas uma parte da religião. Então não se pode, sem nenhum exercício imaginativo, ou seja, só com um exercício lógico e dialético, entender mais que a doutrina das religiões. Do mesmo modo que não podemos, dado o exemplo, entender as profissões assim. Tanto é assim que um sujeito pode ser perfeitamente competente numa área artística, técnica ou científica e dizer que não serve para tal profissão; do mesmo jeito, é possível entender uma religião, apreender toda a sua coerência doutrinal, e não ser religioso – mas para compreender o que é a religião – isto é: entendê-la em sua integralidade - é imprescindível se colocar imaginativamente na situação do religioso. Ou o sujeito que gosta de montanha ao lado de outro que gosta de praia. Só a descrição do que é praia ou montanha pela ciência da Geografia ou Geologia não gera nenhuma preferência por montanha ou praia; mas aquele sujeito que gosta de montanha, por um exercício imaginativo, se se imagina na situação daquele outro que prefere praia, ele pode entender porque o outro gosta de praia, mas não necessariamente mudar sua predileção por montanha: dirá somente que gostar de praia também é possível para o ser humano, embora não para si. Assim, cada religião é um todo orgânico no qual o elemento doutrinal é apenas um elemento. Só entender a doutrina não explica nada sobre ela; se só entendemos a sua doutrina, as religiões nos dão a impressão de cada uma delas é um tipo inferior ou superior de uma outra: que o Islamismo, por exemplo, é quase como o Cristianismo, mas doutrinariamente inferior a ele: um Cristianismo imperfeito. Para entender de fato uma religião é preciso se colocar no lugar das pessoas para quem a religião é, por exemplo, mais importante que a própria vida delas; às vezes é claro, a depender do caso, é uma tolice do sujeito que diz isso; mas em outros casos é porque aquela estrutura é tão coerente na existência do sujeito que desistir daquilo, para ele, é desistir de si mesmo. Mas sem esforço imaginativo, sem se colocar na situação desse sujeito, não é possível entender isso; se passarmos a nos imaginar na situação dele, se pensarmos que estamos realmente na sua situação, evidentemente estaremos a um passo da loucura; só porque imaginamos, isso não quer dizer que a suposição tornou-se real. Aquele que diz que se imaginando budista tornou-se um pouco budista é um pouco louco. Se fosse assim, imaginar-se na posição do Super-Homem nos faria fazer voar um pouco. Isso porque a imaginação é mais elástica que a vivência concreta; tanto que ela permite a concepção de seres que não existem concretamente; mas, por mais elástica que ela seja, ela jamais ultrapassará sua elasticidade para a existência completa. Nunca se transformará o mundo concreto pela imaginação, porque a vida concreta, o mundo concreto tem determinadas leis, e a imaginação tem outras. Quando tivermos aula de Hinduísmo, por exemplo, vamos fazer de conta que não sabemos nada da religião de cada um de nós, e que não conhecemos outra religião que o Hinduísmo: vamos imaginativamente vivenciá-la. Assim que a aula acabar, esperamos que todos voltem para o mundo normal, e ninguém se torne hindu por força da imaginação. A religião é um modo de ser, não apenas um modo de pensar: ela é um modo de existir como humano, e é por isso que não basta pensar nos termos de uma religião para entendê-la. Em certo sentido, a religião é o que separa os homens dos animais, porque a religião existe justamente para preencher as necessidades que são causadas por esses conceitos originais: Absoluto, Justiça e Morte - conceitos absolutamente humanos. A religião é um traço, uma característica marcadamente humana. Porque Deus não tem religião – Ele não precisa se religar a Ele mesmo. Cada religião é um modo de ser humano, um modo de ser; esse modo de ser inclui um modo de agir, um modo de pensar, um modo de querer, mas não é cada uma dessas partes: é como a seiva que flui para cada uma dessas partes. No estudo de cada religião deveremos provar a seiva de cada uma delas para entendê-las. Uma religião é também isso: um sabor espiritual. Excepcionalmente, num caso e noutro - muito raro - esse ato de saborear as diversas experiências das diversas religiões leva o sujeito a descobrir que ele prefere uma religião que ele não conhecia; mas normalmente isso faz o sujeito perceber novamente, recordar o sabor da religião que ele já tinha. As conversões verdadeiras são muito mais raras do que pensamos. Dentro do Cristianismo há muitas modalidades, mesmo como dentro do Hinduísmo, por exemplo. Um cristão poderá dizer que em determinada modalidade do Cristianismo ele vivenciava menos a religião do que em um outro – que era católico e passou a ser protestante, que era protestante e tornou-se católico – isto é muito mais natural, afinal estamos falando do mesmo universo religioso. Mas uma conversão autêntica para outra religião é muito difícil. E quando verificarmos a natureza de cada religião e percebermos quão cada uma delas tem uma coerência única e fechada, veremos como é difícil entrar numa religião, passar para dentro dela. É muito mais difícil que mudar de país. Parece mais fácil. Porque confundimos tudo o que é invisível, ou interior, espiritual, com nosso pensamento; podemos pensar o que quisermos a hora que quisermos; poderíamos pensar assim que podemos ser da religião que quisermos a hora que quisermos. Se a religião fosse um modo de pensamento, isso seria possível e verdadeiro – mas a religião não é um modo de pensamento, mas um modo de ser, e ninguém muda o modo de ser de um dia para o outro. Há algumas religiões cujas informações nos chegaram de modo tão fragmentado que não é possível saber o que é aquilo. Na prática, é impossível saber de uma religião se ela não tem mais nenhum representante autêntico; se não há mais pessoas vivas que vivam de acordo com tal religião, se não há ninguém mais que faz aquilo, não podemos saber se as informações que nos chegam da religião em questão são de pessoas que a cumpriam direito, ou de pessoas que as distorceram. Já sobre o Islamismo, por exemplo, dá: há pessoas vivas que praticam direito e pessoas que não praticam direito o Islam, e dá assim pra saber quem está correto, e confirmar as informações dessa religião, porque a religião é um modo de ser, e não de discurso. É preciso ver como são os budistas, os cristãos, os islâmicos, para compreender as suas religiões, senão não podemos ter certeza, uma vez que qualquer um pode dizer o que quiser sobre determinada religião.

É isso. A cada aula, faremos de conta que somos daquela religião imaginativamente; um Deus com cabeça de elefante não nos será estranho, como um islâmico que estuda Religião Comparada não pode achar estranho, para compreender o Cristianismo, imaginar-se entrando em um templo para comer um pão que é Deus.

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