IGREJA E DENOMINAÇÃO PORQUE TANTA DIFERENÇA

sexta-feira, 13 de abril de 2012

TRAUMAS EMOCIONAIS

ALUNO DO CRISTO, AMANTE DA VIDA, AMIGO DO HUMANO, ADMIRADOR DA CRIAÇÃO, AUXILIAR DA SOCIDADE.








índice
1.          Perturbações Emocionais  ..................................    13
2.          Culpa, Graça e Cobrança de Débitos   ............... .. 31
3.          O Médico Ferido    ............................................ .. 47
4.    A Mais Mortífera Arma de Satanás   ..................    59
5.    A Cura da Imagem Própria Negativa (1]    ....         71
6.    A Cura da Imagem Própria Negativa (2)    ....         83
7.    Os Sintomas do Perfeicionismo   .......................    95
8.    O Processo de Cura do Perfeicionismo   ............    109
9.    O Super "Eu" ou o Verdadeiro "Eu"? ................. .. 123

10.    Verdades e Inverdades Acerca da Depressão ....    135
11.          Resolvendo o Problema da Depressão    ............    147
12.    Restaurado Para Ser Bênção  .............................    159


Traumas
emocionais
David A. Seamands


Lançamento:
Semeadores da Palavra
Digitalizado por : Karmitta
WWW.semeador.forumeiros.com



Prefácio
Há alguns anos atrás esse assunto da cura interior tornou-se muito popular, e nessa ocasião um amigo meu que é psicólogo deu-me o seguinte conselho:
— Procure ouvir as fitas de David Seamands. A mensagem dele é concisa, bíblica e o ensinamento mais claro que já se deu sobre o assunto.
Agora vemos que o Dr. Seamands ampliou suas mensagens, colocando-as num livro, que alia uma boa teologia bíblica, com uma sólida psicologia e simples bom-senso. O autor aborda questões tais como raiva, senso de culpa, depressão, complexo de inferioridade e perfeccionismo — sentimentos que nos dão a sensa­ção de que nunca atingimos a perfeição. Depois ele nos leva ao cerne do constante sofrimento emocional e mostra como podemos nos libertar, de uma vez por todas, de nossos tormentos interiores e dos traumas emocionais.
Esta obra foge de soluções simplistas e de condena­ção descaridosa, ao mesmo tempo que procura não utilizar um jargão complicado. Não; o Dr. Seamands tem um estilo compassivo, leve e compreensivo, entre­meando tudo com um humor agradável, com ilustra­ções interessantes sobre pessoas reais. Aqui temos, portanto, a palavra de um pastor compreensivo, que se mostra bem à vontade, tanto para comunicar as verdades bíblicas, como para dar aconselhamento aos que buscam soluções para seus problemas.












7


Como já respeitava profundamente a capacidade de David Seamands, abri este livro com ótima expecta­tiva. E não fiquei decepcionado. Constatei que o livro dele é interessante, bastante informativo e grande­mente valioso para mim mesmo. Estou satisfeito pelo alto privilégio de recomendar sua leitura a todos, e o faço com grande entusiasmo.
Gary R. Collins, Ph. D.
Professor e Diretor da
8

Escola Teológica Trinity


Introdução
Ainda no início do meu pastorado, descobri que, através dos trabalhos regulares da igreja, não estava conseguindo auxiliar algumas pessoas com certos pro­blemas. Percebi que nem mesmo com a pregação da Palavra de Deus, nem a entrega pessoal delas a Cristo, nem a plenitude do Espírito, nem com a oração e os sacramentos, essas pessoas estavam conseguindo su­perar seus problemas.
Vi também que algumas delas tendiam a afastar-se, tornando-se fúteis, e perdendo a fé no poder de Deus. Embora orassem fervorosamente, não estavam rece­bendo resposta para suas petições relacionadas com problemas pessoais. Tentavam exercitar todo tipo de disciplina cristã, mas sem resultados. E quando roda­vam para mim o mesmo "disco estragado" de sempre, contando suas derrotas, a agulha se agarrava aos mesmos entraves emocionais. Embora continuassem a manter o mesmo ritual religioso exterior — orar, contribuir e testemunhar — estavam-se aprofundando cada vez mais no desespero e desilusão.
Percebi também que outros com esses problemas tendiam para a hipocrisia. Ficavam a reprimir seus sentimentos, negando que tivessem dificuldades sé­rias, pois "uma pessoa convertida não pode ter esse tipo de problema". Em vez de encarar a realidade de frente, eles a encobriam com um verniz de versículos bíblicos, termos teológicos e atitudes irreais.
O que sucedia então era que esses problemas, cuja existência era negada, ficavam enterrados no íntimo, e mais tarde reapareciam sob a forma de enfermidades, excentricidades, casamentos infelizes e, por vezes, até mesmo de desintegração emocional dos filhos.
9


Na época em que fiz essas descobertas, Deus me mostrou que as formas comuns do ministério pastoral não serviriam para solucionar alguns deles. Ele reve­lou-me também que devia abrir meu coração para um auto-exame, em busca de uma nova visão de meu relacionamento com minha esposa, filhos e amigos mais chegados.
Depois disso, Deus me orientou para que ampliasse meu ministério pastoral, a fim de incluir nele um cuidado especial e um ministério de oração por pes­soas com problemas emocionais e traumas de infância.
E nesses vinte anos em que tenho estado pregando, ensinando, distribuindo fitas sobre o assunto e dando aconselhamento a indivíduos com problemas dessa natureza, tenho ouvido milhares de testemunhos de indivíduos que antes eram derrotados na vida cristã, e que foram libertados dos traumas emocionais e ficaram curados de distúrbios causados por lembranças pas­sadas.
Neste livro, o leitor ficará conhecendo algumas dessas pessoas, e letra a respeito de atitudes e sensa­ções que conhece bem, por experiência própria ou pela experiência de um ente querido.
Qualquer semelhança com pessoas reais aqui é perfeitamente intencional, e não mera coincidência. Todos os indivíduos mencionados neste livro são gente real, viva. Narramos sua história com a devida per­missão, mas, o nome e local dos incidentes foram modificados para corresponder à confiança em nós depositada.
Qualquer semelhança com a sua vida pode parecer coincidência, mas também é intencional, pois a maio­ria das pessoas possui os mesmos anseios e carências.
Espero que os capítulos deste livro possam ajudar cada leitor a enxergar o modo como Deus opera na cura de traumas emocionais, na transformação de desajustes em equilíbrio emocional, tornando um con­vertido derrotado em bênção para outros.
David A. Seamands Wilmore, Kentucky
10


"Ele mesmo tomou as nossas enfermidades."
(MT8.17J
"Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira com gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os corações sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de Deus é que ele intercede pelos santos."
(Em 8.26,27.]


1
Perturbações Emocionais
Em 1966, preguei um sermão, num domingo à noite, cujo título era "O Espírito Santo e a cura de nossos traumas emocionais". Foi minha primeira tentativa de penetrar nesta área, e estava convencido de que Deus mesmo me transmitira aquela mensagem, senão nem teria tido coragem de entregá-la. O que eu disse na­quela ocasião, sobre a cura interior, hoje já é coisa ve­lha. Podemos encontrar essas idéias em alguns outros livros. Mas naqueles dias era novidade.
Quando me levantei para pregar, olhei para a congregação e vi ali o nosso querido e velho conhecido Dr. Smith. Acontece que ele era uma pessoa que estava muito presente nas lembranças de minha infân­cia. Na ocasião em que eu e minha esposa soubemos que tínhamos sido indicados para exercer o pastorado onde nos encontramos hoje, logo vieram à nossa mente a recordação de algumas fisionomias de velhos conhe­cidos para nos perturbarem um pouco. Uma dessas era a do Dr. Smith. Eu me indagava como poderia ser pastor dele. Quando eu era jovem, quantas vezes ficara nervoso com a sua pregação, e ainda me sentia um pouco sem jeito na presença dele.
Quando o avistei no culto, naquela noite, senti meu coração apertar-se. Mas, mesmo assim, entreguei a mensagem que acreditava me fora dada por Deus. Após o culto, várias pessoas vieram à frente e tivemos maravilhosos momentos de oração ali. Mas notei que o
13


Dr. Smith permanecera sentado em seu lugar. Enquan­to orava pelas pessoas que se achavam no altar, fiquei desejando interiormente que ele fosse embora. Mas ele não foi. Por fim, veio à frente, e, com aqueles seus modos secos, disse:
David, posso falar com você em seu gabinete?
Imediatamente vieram à minha lembrança todas as
imagens do passado, e quem seguiu aquele idoso ali foi um rapazinho assustado. Quando me sentei, senti-me um pouco como Moisés deve ter-se sentido perante o fogo e a fumaça do monte Sinai. Mas estava muito enganado com relação a ele — não tinha pensado que ou desse ter havido uma mudança. Eu petrificara a imagem que tinha dele no passado, e não deixara que ela se modificasse com o passar dos anos. Mas o Dr. Smith dirigiu-se a mim com muita mansidão e disse:
David, nunca ouvi uma mensagem igual a esta
antes, mas quero dizer-lhe uma coisa.
A essa altura, os olhos dele estavam marejados. Ele fora um extraordinário evangelista e pregador durante muitos anos e ganhara milhares de almas para Cristo. Era realmente um grande homem. Mas, ao reexami­nar seu ministério, disse:
Sabe de uma coisa, sempre houve pessoas por
quem nunca pude fazer nada. Eram pessoas sinceras.
Acredito que muitas delas eram cheias do Espírito,
mas tinham sérios problemas. Falavam-me de suas
dificuldades, e eu tentava auxiliá-las. Mas por mais
que as aconselhasse, por mais que citasse as Escritu­
ras, por mais que elas orassem, nada disso parecia
dar-lhes uma libertação total.
E em seguida ele acrescentou:
Sempre tive um certo senso de culpa em meu
ministério, David. Mas acho que você descobriu uma
nova verdade aí. Procure desenvolvê-la mais, estudá-
la mais. Por favor, continue a pregar sobre isso, pois
creio que você descobriu a solução.
E quando ele se levantou para sair, eram os meus olhos que estavam marejados quando repliquei:
Obrigado, Dr. Smith.
Mas, acima de tudo dizia interiormente: "Obriga-
14


do, Senhor, pela confirmação que me dás por meio deste caro amigo."
O Problema
Nestes quinze anos, com as fitas gravadas sendo enviadas a todos os recantos do mundo, tenho recebido cartas e testemunhos confirmando minha certeza de que existe um certo tipo de problema que requer um toque mais profundo do Espírito Santo, e uma oração especial. De um lado estão nossos pecados e do outro nossas doenças, e entre os dois existe uma área que a Bíblia chama de "enfermidades".
Podemos explicar isso melhor citando uma ilustra­ção da própria natureza. Quem visita o Estado da Califórnia pode ver as belas Sequóias gigantes. Na maioria dos parques, existem naturalistas que mos­tram aos interessados um corte dessa grande árvore, explicando que os anéis dela revelam a história de seu desenvolvimento, a cada ano. Há por exemplo um anel que representa um ano em que houve terrível seca. Há também outros dois anéis que falam de um ano que choveu demasiadamente. Ali há um ponto em que a árvore foi atingida por um raio. Aqui alguns anéis que revelam um desenvolvimento normal. Um outro anel mostra um incêndio florestal que quase destruiu a ár­vore; outro mais revela um ataque da ferrugem e de outras doenças. E tudo isso está gravado no tronco da árvore, como se fosse uma autobiografia de seu desen­volvimento.
Assim acontece também conosco. Alguns "centíme­tros" abaixo da casca protetora, da máscara dissimuladora, acham-se registrados os anéis de nossa vida.
Ali estão as cicatrizes de mágoas antigas, doloro­sas. .. como as do garotinho que acordou na manhã do dia de Natal e correu à janela dos fundos para ver seu sapatinho; e chegando ali encontrou nele apenas uma pedra suja, castigo por uma travessura qualquer. Essa cicatriz fica a corroê-lo, causando todo tipo de proble­ma em suas relações com os outros.
Ali está a descoloração de uma mancha trágica que
15


enxovalhou toda uma existência... quando, alguns anos atrás, um garoto levou a irmãzinha para um paiol ou para um mato, e revelou a ela os mistérios... não, as misérias do sexo.
E mais adiante as pressões de uma recordação penosa... quando uma criança tinha de correr atrás de um pai alcoolizado que estava a ponto de matar a mãe, e depois tinha de agarrar o facão antes que ele o fizesse. Essas cicatrizes ficam enterradas por longo tempo e depois provocam mágoas e iras inexplicáveis. E elas não são sanadas pela conversão, nem pela santificação, nem pelos outros benefícios comuns da oração.
Tudo está registrado nos anéis de nossa mente e de nossa psique. As lembranças estão gravadas; todas vivas lá dentro. E elas vão afetar diretamente nossos conceitos, sentimentos e relacionamento com outros. Vão afetar o modo como encaramos a vida, como vemos a Deus, os outros e a nós mesmos.
Muitas vezes, nós, os pregadores, damos aos ouvin­tes a enganosa idéia de que o novo nascimento e a plenitude do Espírito irão automaticamente resolver esses problemas emocionais. Mas isso não é verdade. A grande experiência com Cristo, embora seja impor­tante e de valor eterno, não constitui um atalho para a cura de nossos males mentais. Não é uma cura instan­tânea para nossos problemas de personalidade.
É necessário que compreendamos bem isto, primei­ro, para que possamos aceitar-nos bem, e permitir que o Espírito Santo opere em nós, de uma forma toda especial, a fim de curar nossas mágoas e complexos. Precisamos entender isso também, para não julgarmos os outros com muita dureza, mas termos paciência com aqueles que demonstram uma conduta contraditória e confusa. Agindo assim, evitaremos fazer críticas injus­tas e julgamentos errados contra nossos irmãos. Eles não são falsos, fingidos nem hipócritas. Somos pessoas, como nós, com suas mágoas, cicatrizes emocionais e formação errada, e essas coisas interferem na condu­ta do momento.
Se compreendermos bem que a salvação não nos dá
16


uma cura imediata dos males emocionais terá uma compreensão melhor com relação à doutrina da santificação. É impossível saber o grau de espiritualidade de uma pessoa simplesmente pela observação de sua conduta exterior.
Mas não é verdade que pelos seus frutos os conhecereis? (Mt 7.16.) É; mas é verdade também que pelas suas raízes poderemos compreendê-los, sem julgá-los. Aqui está João, que parece ser mais espiritual e mais responsável do que Pedro. Mas, em realidade, se levarmos em consideração as raízes de João e o solo no qual ele se desenvolveu, e compararmos com os de Pedro, poderemos concluir que, na verdade, Pedro é um santo. Pode ser que este tenha crescido muito mais do que João, em direção à imagem de Jesus Cristo. Como é errado, como é anticristão julgar as pessoas superficialmente!
Mas talvez alguns objetem:
— O que você está fazendo? Rebaixando os padrões cristãos? Está negando o poder do Espírito Santo para curar nossos traumas? Está dando uma saída fácil para nossas responsabilidades, para que joguemos a culpa de nossos atos, de nossas derrotas e fracassos na vida, na hereditariedade, nos pais, professores, namoradas ou esposas? Ou como diz o apóstolo Paulo: "Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante?" (Rm 6.1.)
E eu responderia como Paulo: "De modo nenhum." O que estou querendo dizer é que existem certas áreas de nossa vida que precisam de um toque especial do Espírito Santo. São coisas que estão fora do alcance das orações comuns, da disciplina, da força de vonta­de, e exigem um discernimento especial, precisam sofrer uma "desprogramação", e passar por uma transformação remodeladora, com a renovação da mente. E isso não acontece da noite para o dia, como uma experiência momentânea.
Dois Extremos
Se entendermos bem essas coisas, estaremos evitan­do o perigo de cair em um dos dois extremos. Alguns
17


crentes vêem o diabo em qualquer coisa um pouco mais estranha. Deixe-me dizer uma palavra muito séria para esses novos convertidos ou cristãos imatu­ros, mas quero dizê-la em amor. Durante estes séculos todos, a igreja tem sido muito cautelosa antes de afirmar que uma pessoa está endemoninhada. Existe realmente a possessão demoníaca. Em meus muitos anos de ministério, em algumas situações raras, tenho-me sentido impulsionado a usar da autoridade do nome de Jesus para expulsar um demônio, e tenho presencia­do cura e libertação nesses momentos.
Mas somente um cristão maduro, cuidadoso e que ore muito pode tentar expulsar demônios. Quantas vezes tenho passado horas e horas em aconselhamento com pessoas que se sentem arrasadas e desiludidas, tentando reanimá-las e reerguê-las, simplesmente porque um cristão imaturo cismou de expulsar delas demônios imaginários.
O outro extremo é dar uma solução demasiadamen­te simplista, dizendo:
— Leia mais a Bíblia. Ore mais. Tenha mais fé. Se você estivesse bem espiritualmente, não teria este problema. Nunca ficaria deprimido. Nunca teria esses traumas e taras.
Contudo, aqueles que dão tal resposta estão sendo muito insensíveis. Estão apenas colocando mais pres­sões sobre uma pessoa que já sofre muito e que está lutando, e sem sucesso, com um problema de origem emocional. Ela já tem forte sensação de culpa com relação a ele; e quando outro o leva a sentir-se pior por ter o problema, está redobrando o peso de sua culpa e desespero.
É possível que o leitor já tenho ouvido a história daquele homem que estava viajando num vôo noturno, e quando abriu a caixinha com o jantar pré-embalado encontrou, bem em cima da salada, uma enorme barata. Chegando em casa, escreveu uma veemente carta de protesto ao presidente da empresa. Alguns dias depois, recebeu uma carta expressa, assinada pelo presidente. Vinha cheia de desculpas.
"Foi um acidente bastante raro para nós, mas não
18


se preocupe. Gostaria de assegurar-lhe que aquele avião foi totalmente dedetizado. Aliás, todos os assen­tos e estofamentos foram removidos. Tomamos medidas disciplinares contra a atendente que serviu a refeição, e talvez seja dispensada. É bastante provável que a própria aeronave seja encostada. Posso garantir-lhe que isso nunca mais acontecerá. Espero que continue a viajar conosco."
Pois bem, o passageiro ficou muito impressionado com essa carta, até que notou um fato. Por engano, a carta que ele tinha enviado ao presidente viera presa à resposta deste. E quando olhou para ela, viu uma nota rabiscada embaixo, que dizia: "Envie nossa cos­tumeira circular para reclamação de barata."
E quantas vezes nós também damos uma costumei­ra resposta para a reclamação de baratas às pessoas que estão sofrendo problemas emocionais. Damos res­postas padronizadas, simplistas demais, que os deixam ainda mais desesperados e desiludidos.
As Evidências
Quais são essas doenças emocionais? Uma das mais comuns é um profundo sentimento de desvaJor, uma perene sensação de ansiedade, incapacidade e inferioridade, uma vozinha interior que vive a repetir: "Nãu presto para nada. Nunca serei nada. Ninguém pode gostar de mim. Tudo que faço dá errado."
O que acontece a esse indivíduo quando se conver­te? Uma parte de seu ser crê no amor de Deus, aceita o perdão de Deus e sente paz por algum tempo. Mas depois, de repente, parece que algo dentro dele acorda e grita: "É tudo mentira! Não creia nisso! Não ore! Não há ninguém lá em cima para escutá-lo. Ninguém pode aliviar sua aflição. Como Deus poderia amar e perdoar a uma pessoa como você? Você é ruim de­mais!"
O que aconteceu? Aconteceu que as Boas-Novas do evangelho não atingiram o mais íntimo recesso de seu ser, que foi traumatizado, que também precisa receber a mensagem do evangelho. Essas cicatrizes profundas
19


precisam ser alcançadas pelo "Bálsamo de Gileade" e por ele curadas.
Mas existe também um outro tipo de problema que, na falta de um termo melhor, denomino complexo de perfeicionismo. Trata-se de um sentimento interior de insatisfação. "Não consigo fazer nada. Nunca faço nada direito. Não consigo satisfazer nem a mim mes­mo, nem aos outros, nem a Deus." Esse tipo de pessoa está sempre procurando alguma coisa, sempre lutan­do, e geralmente carrega uma sensação de culpa, sempre impelida pelo que sente ser seu dever. "Devo ser capaz de fazer isso. Devo ser capaz de fazer aquilo. Tenho que melhorar." Está sempre tentando "subir", mas nunca chega ao alto.
Então, o que se passa com essa pessoa quando se converte? Infelizmente, em geral, ela transporta esse mesmo senso de perfeicionismo para seu relaciona­mento com Deus, que ela agora vê como um Ser lá no alto de uma escada. E diz consigo mesma: "Agora vou subir para chegar até Deus: Sou filho dele e desejo agradá-lo mais que qualquer coisa."
E assim ela se põe a subir, degrau por degrau, até ficar com os nós dos dedos em sangue e com os joelhos feridos. Finalmente, chega ao alto, e ali descobre que Deus avançou mais três degraus. Então ela resolve esforçar-se um pouco mais. E sobe e luta, mas quando checa lá, seu Deus já subiu mais três degraus.
Faz alguns anos, recebi um telefonema de uma senhora, esposa de um pastor amigo, pedindo-me que conversasse com ele. O marido acabara de sofrer um sério colapso nervoso. Quando nos dirigíamos para o hospital, ela se pôs a explicar algumas coisas a respeito dele.
— Não entendo o Bill, disse. Parece até que ele tem um "feitor" dentro dele, que não o larga para nada. Ele nunca relaxa, pois não consegue largar mão das coisas. Está sempre trabalhando excessivamente. O povo da igreja gosta muito dele, e faria qualquer coisa por ele, mas ele não o permite. E já está nesse ritmo há tanto tempo, que afinal não agüentou mais.
Fiz diversas visitas a Bill, e quando ele melhorou


um pouco, já podendo conversar, falou-me de sua infância e de seu lar. Quando era criança, desejava ardentemente agradar a seus pais. E procurava con­quistar a admiração da mãe ajudando-a a pôr a mesa de vez em quando. Mas ela dizia:
   Bill, você colocou as facas do lado errado. Então ele as colocava do lado certo. Mas ela dizia:
   Agora colocou os garfos do lado errado. Depois eram os pratos de salada. E nunca parecia
que as coisas estavam certas para ela. E por mais que tentasse, também não conseguia satisfazer ao pai. Trazia o boletim com notas 8 e 9, mas o pai olhava para o cartãozinho e dizia:
Bill, acho que se você se esforçar um pouco,
poderá tirar 9 em tudo, não poderá?
Então ele se pôs a estudar mais e mais, e certo dia trouxe o boletim com 9 em todas as matérias. Então o pai disse:
Mas sabe de uma coisa? Se você se esforçar um
pouco mais, poderá tirar 10 em tudo.
E ele estudou e se esforçou durante vários meses, até que finalmente ganhou 10 em tudo. Ficou tão entusiasmado! Agora, o pai e a mãe certamente fica­riam muito satisfeitos com ele. Correu para casa, pois não via a hora de chegar lá. O pai olhou para o cartão e depois disse:
Ah, conheço esses professores. Eles dão 10 à
toa!
Quando se tornou pastor, sua congregação era para ele como seus pais: trocou os dois por cem pais. Não conseguia nunca satisfazê-los, por mais que se esforçasse. Afinal, não suportou mais e teve um colap­so, devido ao imenso esforço de tentar agradá-los, e de sempre tentar superar a si mesmo.
Certa vez um teólogo modernista, desses que espo­sam a tese de que Deus está morto, estava sendo en­trevistado. O repórter lhe perguntou:
  O que é Deus, para o senhor?
  Deus? Ah, para mim, Deus é aquela vozinha interior que está sempre dizendo: "Ainda não está bom!"
21


Com isso , ele não falou muito acerca de Deus, mas revelou muita coisa sobre seus traumas. E acredito que pessoas doentes assim só podem produzir doutri­nas enfermas. Ah, como o complexo de perfeicionismo derrota a muitos na caminhada cristã! E como afasta as pessoas do reino de Deus!
Existe outro tipo de trauma emocional que podemos chamar de susceptibilidade. Em geral, a pessoa que é super sensível já sofreu muitas mágoas. É uma pessoa que desejou o amor, a admiração e a afeição de outros, mas só recebeu o contrário, e assim carrega profundas cicatrizes emocionais. Muitas vezes, ela vê coisas que os outros não vêem, e sente a realidade de uma forma que os outros não sentem.
Certo dia, eu estava andando por uma rua e vi o Charlie vindo em minha direção. Ele é um indivíduo muito susceptível. Geralmente dispenso a ele muita atenção, mas naquele dia estava um pouco apressado e disse apenas:
Oi, Charlie! Como vai?
E segui em frente. Quando cheguei ao meu gabine­te, recebi um telefonema de um membro da igreja que me perguntou:
  O Senhor está chateado com o Charlie?
  Qual Charlie?
  O senhor sabe; o Charlie Olson.
  Não; até o vi na rua hoje.
Mas, de repente, compreendi que o problema era que não havia dado a ele a atenção e consideração que geralmente dou, sabendo que é extremamente sensí­vel.
As pessoas muito susceptíveis exigem muito agra­do. E por mais atenção que lhes demos, esta nunca é suficiente. Em alguns casos, elas se tornam duras e insensíveis. É que sofreram tantas mágoas, que, em vez de se tornarem sensíveis, camuflam o fato tornando-se "duronas". Querem se vingar nos outros. Assim, qua­se que inconscientemente, passam a vida a empurrar os outros para o lado, a magoar e dominar as pessoas. E se utilizam de armas tais como dinheiro, posição, autoridade, sexo e até mesmo o púlpito para magoar as
22


pessoas. Será que isso afeta sua experiência cristã? Sim, e profundamente.
E depois há indivíduos que estão sempre cheios de temores. Às vezes o maior temor deles é o de fracas­sar. As pessoas que sofrem esse tipo de trauma têm tanto medo de perder o jogo da vida, que encontram apenas uma saída — nunca entram no jogo. Ficam sentadas nas laterais. Dizem elas:
   Não aceito as regras do jogo; não gosto do juiz. Ou então:
   A bola não é bem redonda. Ou então:
   As traves não estão na posição certa.
Há alguns anos, fui a uma revendedora de carros usados. Quando estava examinando os carros em exposição na companhia de um vendedor, vimos um homem lá fora dando chutes nos pneus dos carros estacionados para venda. Depois ele erguia a capota e dava golpes no pára-choques do veículo. O vendedor virou-se para mim e comentou irritado:
  Olhe só aquele sujeito ali. E desses que só
querem chutar os pneus. São o espinho de nossa
profissão. Estão sempre entrando aqui, mas nunca
compram, pois não se decidem. Olhe aquele ali. Está
dando chutes nos pneus. Diz que as rodas não estão
alinhadas. Depois liga o motor, escuta um pouco e diz:
"Está ouvindo bater?" Ninguém ouve nada, só ele.
Sempre há alguma coisa errada no carro. Mas na
verdade é que ele tem medo de chegar a uma defini­
ção, não consegue tomar a decisão, então fica procu­
rando desculpas.
E o mundo está cheio desses chutadores de pneus, pessoas que têm receio de fracassar, de tomar a decisão e errar. O que se passa com uma pessoa dessas, quando se converte? Crer é um grande risco; é muito difícil. Fazer uma decisão é um ato doloroso para eles. É muito difícil ter fé. Dar testemunho é um peso. Entregar-se de corpo e alma ao Espírito Santo, fazer uma rendição pessoal a Cristo é quase um trauma. Exercitar autodisciplina também é penoso. Essas pessoas temerosas vivem sempre no plano do se
23


pelo menos: "Se pelo menos houvesse isso ou aquilo, estaria tudo bem." Mas esse se pelo menos nunca se resolve, e assim elas nunca conseguem o que desejam. Os temerosos são aqueles que estão constantemente sendo derrotados e mostrando-se indecisos.
A questão do sexo acha-se estreitamente relaciona­da com todas essas mencionadas, mas precisamos dar uma palavra especial sobre ela.
Quando Paulo escreveu sua primeira carta aos coríntios, abordou todos os problemas humanos possí­veis e imagináveis, e alguns dos mais inimagináveis. Falou sobre disputas, divisão da igreja em grupos, casos de tribunais, contendas acerca de propriedades e vários tipos de problemas sexuais, desde o incesto até a prostituição. Falou sobre sexo pré-conjugal, conjugai e extra-conjugal. Analisou questões tais como viuvez, divórcio, vegetarianismo, bebedices por oca­sião da Ceia do Senhor, dons de línguas, mortes e enterros, o levantamento de ofertas e campanhas pes­soais dentro da igreja.
Contudo, ele inicia sua carta dizendo que não queria saber nada entre eles, a não ser "Jesus Cristo, e este crucificado" (1 Co 2.2). Isto significa que o evangelho é algo de muito prático, e atinge toda a nossa vida. Grande parte da carta de Paulo tinha a ver com problemas de ordem sexual.
Estamos vivendo uma época como a de Corinto. É muito difícil, em nosso mundo atual, uma pessoa não sofrer algum tipo de trauma sexual na fase de forma­ção.
Poderia citar milhares de pessoas que me procu­ram solicitando orientação. Lembro-me de uma senho­ra em cuja igreja preguei, e que depois de ouvir-me fez uma viagem de quase dois mil quilômetros para falar comigo. Recordo-me também de um senhor que entrou em meu gabinete certo dia, e disse que havia rodado em torno do quarteirão onze vezes, reunindo coragem para vir falar comigo. Ambos eram cristãos sinceros, e todos os dois estavam enfrentando problemas de ho-mossexualismo.
Lembro-me de uma jovem, estudante de uma uni-
24


versidade distante, onde preguei. Até hoje não sei como é a fisionomia da moça, pois ficou o tempo todo de costas para mim, com o casaco erguido em torno do rosto, sentada a um canto da sala, soluçando. Por fim disse:
— Preciso contar isso para alguém, senão vou explodir.
E então, ainda virada para o canto, contou-me uma história triste, uma história que estamos ouvindo cada vez mais nestes dias, sobre um pai que não a tratava como filha, mas como esposa.
Lembro-me de dezenas de rapazes e moças que receberam informações falsas e perniciosas de seus pais e pastores, pessoas bem intencionadas, mas igno­rantes. Agora são indivíduos despreparados para o casamento, incapazes de serem bons maridos e espo­sas, não conseguindo mais viver sem temores, senso de culpa e vergonha. Traumatizados. Sim; e seriamente.
E o evangelho teria uma solução para esses diver­sos tipos de traumas? Se ele não puder oferecer a solu­ção para todos eles, então será melhor que ponhamos cadeados em nossas igrejas, paremos de brincar de cristianismo e calemos a boca, parando de falar sobre essa nossa Boa-Nova.
A Restauração Divina
Deus tem soluções para oferecer-nos? Tem sim. Em sua carta aos romanos, Paulo falou sobre o Espírito Santo que nos assiste em nossa fraqueza (Rm 8.26). Um sentido da palavra assistir é justamente o de acompa­nhar, passo a passo, um processo de cura. Então não se trata apenas de "pegar a outra ponta do peso", que é o sentido literal deste verbo, mas o Espírito Santo torna-se nosso companheiro, que trabalha a nosso lado, participando de nosso processo de restauração.
E qual é a parte que nos cabe neste processo de cura da alma enferma? O Espírito Santo é, realmente, o conselheiro divino, o psiquiatra espiritual que carre­ga "a outra ponta" do problema. Mas nós seguramos a


de cá. E o que é exatamente que temos de fazer nesse processo?
Esse é justamente o objeto deste livro, e o leitor encontrará muitas sugestões, à medida que for pros-seguindo na leitura. Contudo, neste ponto, eu gostaria de apresentar os princípios bíblicos gerais, que devem ser observados, para que encontremos a cura de nossos traumas emocionais.
1.          Encarar o problema de /rente. Com a ajuda de Deus, você terá que encarar de frente essa terrível e oculta mágoa de infância, com toda a sinceridade moral, por mais profunda que ela seja. Reconheça o problema ao nível do consciente, para si mesmo, e fale dele para outra pessoa. Existem problemas que nunca poderão ser solucionados, enquanto não falarmos deles para outrem. "Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros, para serdes curados." (Tg 5.16.) Algumas pessoas deixam de rece­ber uma cura de alcance mais profundo, por não terem coragem de abrir-se totalmente com outros.
2.          Aceitar nossa responsabilidade no fato. Você poderá dizer: "Eu fui uma vítima; essa pessoa pecou contra mim. O senhor não imagina o que aconteceu comigo."
É verdade. Mas, e a sua reação? E o que dizer do fato de você ter abrigado ressentimentos e ódio, ou ter-se recolhido a um mundo irreal, para fugir ao problema?
E alguém poderá dizer:
— Meus pais não me ensinaram nada sobre o sexo, e quando cresci e tomei contato com esse mundo mau, era inocente e ignorante. Por isso tive esses proble­mas.
Isso foi o que aconteceu na primeira vez. Mas, e quanto à segunda e terceira? De quem foi a culpa? A vida é como uma tapeçaria muito complexa, tecida com tear e lançadeira. A hereditariedade, o ambiente, as experiências da infância vividas com pais, profes­sores, colegas, as adversidades da vida, tudo isso está do lado do tear, e essas coisas jogam a lançadeira para nós. Mas lembremos que nós atiramos a lança-
26


deira de volta para o tear. E este ato, juntamente com nossa reação para com essas coisas, é que vão dando forma à tapeçaria de nossa vida. Somos responsáveis por nossas ações. Você nunca conseguirá a cura para seus traumas, enquanto não parar de colocar a culpa nos outros, e aceitar sua responsabilidade.
3.   Perguntar a nós mesmos se desejamos realmen­
te ser curados. Foi essa a pergunta que Jesus dirigiu ao
paralítico que estava enfermo havia trinta e oito anos
(Jo 5.6.) Você deseja realmente ser curado, ou está
querendo apenas conversar sobre seu problema? Você
não está querendo apenas usar esse problema para
despertar a compaixão dos outros? Não o está queren­
do apenas como uma muleta, para que possa caminhar
manquitolando?
E o paralítico respondeu para Jesus: "Mas, Senhor, ninguém me põe na água. Eu bem que tento, mas todos chegam antes de mim." Ele não queria examinar o fundo de seu coração, para ver realmente se desejava ser curado.
Vivemos numa época que alguns denominam "era da malandragem", onde cada um quer jogar a culpa nos outros, em vez de aceitar suas próprias responsa­bilidades. Pergunte a si mesmo: "Será que desejo realmente ser curado? Estou disposto a encarar minha responsabilidade no problema?"
4.          Perdoar a todos que estão envolvidos em nosso problema. Encarar nossa responsabilidade no caso e perdoar os outros, são, na verdade, as duas faces de uma mesma moeda. A razão por que algumas pessoas não conseguem perdoar seu ofensor é que, se o fize­rem, estarão perdendo o último pé de apoio, e não terão mais a quem culpar. Encarar nossa parte num erro e perdoar ao outro são quase a mesma ação. Haverá casos em que precisaremos fazer as duas coi­sas simultaneamente. Jesus deixou bem claro que não pode haver cura, enquanto não se der um perdão total.
5.          Perdoar a si mesmo. Muitos dizem: "É, eu sei que Deus já me perdoou, mas nunca poderei perdoar a mim mesmo." De certo modo, isto é uma contradição. Como uma pessoa pode crer realmente que Deus a
27


perdoou, se não pode perdoar a si mesma? Quando Deus nos perdoa, ele enterra nossos pecados no mar de seu perdão e esquecimento. É como disse Corrie ten Boom: "Depois ele coloca uma placa na margem com os dizeres: 'Proibido pescar'." Não temos o direito de "dragar" uma coisa que Deus já perdoou e esqueceu. Ele já a deixou para trás. Por um mistério incompreen­sível, a onisciência divina, de algum modo, já esqueceu nossos pecados. Você pode perdoar a si mesmo.
6. Pedir ao Espírito Santo para nos mostrar qual é realmente nosso problema, e como devemos orar a respeito dele. Paulo disse que muitas vezes não sabe­mos orar como convém (Rm 8.26). Mas o Espírito Santo ora por nosso intermédio, e intercede por nós. Por vezes, ele utiliza a pessoa de um conselheiro para nos ajudar a descobrir qual é nosso verdadeiro problema. Em outras, ele faz isso por meio da Palavra de Deus ou de algum incidente que, num instante, nos revela o problema. É muito importante que enxerguemos com clareza a questão e saibamos como devemos orar. Tiago nos adverte de que, às vezes, não somos atendi­dos em nossas petições porque pedimos coisas erradas (Tg 4.3). Pode ser que precisemos solicitar a ajuda de um conselheiro ou pastor, ou mesmo de um amigo, e juntamente com essa pessoa orar ao Espírito Santo para que nos aponte onde está o erro.
Já ouviu aquela historieta sobre Henry Ford e Charles Steinmetz? Steinmetz era anão, um homem feio e deformado, mas possuía uma das maiores inteli­gências que o mundo já viu, no campo da eletricidade. Foi ele quem fabricou os primeiros geradores para a fábrica da Ford, em Dearborn, Michigan. Um dia os geradores se queimaram, e toda a fábrica parou. Mandaram chamar vários mecânicos e eletricistas para consertá-los, mas ninguém conseguiu recolocá-los em funcionamento. A firma estava perdendo di­nheiro. Então Henry Ford mandou chamar Steinmetz. E o gênio chegou ali, ficou a remexer por algumas horas, e depois ligou a chave e toda a fábrica voltou a funcionar.
Alguns dias depois Henry Ford recebeu a conta de
28


Steinmetz, no valor de $10.000 dólares. Embora fosse muito rico, devolveu a conta com um bilhete: "Charlie, essa conta não está muito alta para um serviço de poucas horas, em que você apenas deu uma mexida naqueles motores?"
E Steinmetz devolveu-a para Ford, mas desta vez tinha uma explicação: "Valor da mexida nos motores: $10 dólares. Valor do conhecimento do lugar certo para mexer: $9.990 dólares. Total: $10.000." E Ford pagou a conta.
O Espírito Santo sabe o lugar certo de mexer. Não sabemos como devemos orar. E muitas vezes não recebemos, porque pedimos erradamente. Ao ler estes capítulos, peça ao Espírito Santo para mostrar-lhe o que você precisa saber sobre si mesmo, e também que o oriente em sua oração.
29


"Por isso, o reino dos céus é semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos. E... trouxeram-Jhe um que devia dez mil talentos. Não tendo, ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse vendido... Então o servo, prostrando-se reverente, rogou: Sê paciente comigo e tudo te paga­rei. E o senhor daqueJe servo, compadecendo-se, man­dou-o embora e perdoou-ihe a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou um dos seus conservos, que lhe devia cem denários; e, agarrando-o, o sufocava, dizendo: Paga-me o que me deves. Ele... o lançou na prisão, até que saldasse a dívida. Então o seu senhor, chamando-o, disse-lhe: Servo malvado, perdoei-te a-quela dívida toda, porque me suplicaste; não devias tu, igualmente, compadecer-te do teu conservo, como também me compadeci de ti? E, indignando-se o seu senhor, o entregou aos verdugos, até que lhe pagasse toda a dívida. Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão."
(Mt 18.23-35.)
"E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como temos perdoado aos nossos devedores."
[Mt 6.12.)


2
Culpa, Graça e Cobrança de Débitos
Com esta parábola, Jesus expressou seu ensino sobre o perdão com toda a clareza, em cores vivas e som estereofônico. Ela contém muitas revelações sobre nossa restauração espiritual e emocional. Mas isso não deve nos surpreender. Jesus foi a única pessoa equilibrada e perfeitamente sadia que já viveu neste mundo. A Bíblia afirma que ele sabia o que estava no coração do homem, até mesmo o que se esconde bem lá no íntimo. Assim sendo, podemos saber de antemão que seus ensinos e princípios contêm as mais profun­das verdades psicológicas.
A Parábola
Certo rei resolveu acertar as contas com seus credores e, ao fazê-lo, descobriu que um de seus servos lhe devia a fantástica quantia de dez mil talentos. Jesus citou aqui uma soma realmente eleva­da, praticamente impossível de se resgatar. Os impos­tos anuais das províncias da Judéia, Iduméia, Sama-ria, Galiléia e Peréia somados chegavam apenas a cerca de 800 talentos. Mas o exagero da quantia é para acentuar a verdade ensinada. Nossa dívida para
31


com Deus e com os outros é tão elevada, que se torna impossível resgatá-la, assim como um escravo que recebia um salário de poucos talentos por mês não podia economizar o suficiente para saldar um débito de dez mil talentos.
E o homem caiu de joelhos pediu misericórdia ao seu senhor. O que ele pede é uma concessão especial, a makrothumason. Todas as vezes que este vocábulo aparece no Novo Testamento significa "dilatação do tempo, adiamento".
Senhor, seja paciente comigo, diz ele. Adie essa
cobrança, e lhe pagarei tudo. Dê-me um pouco mais de
tempo.
Vemos aí que a idéia que o servo tinha sobre perdão era uma, e a do rei era outra. O senhor, em sua misericórdia, perdoou-lhe tudo e o libertou.
Mas aquele mesmo servo, ao sair dali, encontrou um colega seu, outro servo do rei, que lhe devia a mísera quantia de 100 denários. Então agarrou-o pelo pescoço e disse:
Pague-me o que me deve.
E vendo que o outro não tinha condições de pagar-lhe, ele não teve misericórdia e lançou-o na prisão, até que o pagasse.
Então o rei mandou chamar o servo e disse:
Olhe aqui, eu lhe perdoei toda a sua dívida, e
agora você age assim com seu colega?
E bastante irado com ele, mandou-o para a prisão, até que pagasse o que devia. Se a história terminasse aí, já seria bastante trágica, mas Jesus disse outra coisa logo a seguir, que foi uma verdadeira "pontada": "Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão."
Espere um pouco aí, Jesus. O que o Senhor está querendo dizer com isso? Que imagem do Pai celeste é essa que o Senhor está projetando? Não seria isso uma tradução inexata? Não; a inferência está muito clara. Deus será um cobrador drástico e duro com aqueles que, não perdoarem e não forem perdoados.
Será isso um exagero, como no caso da quantia em dinheiro? Ou será que se refere apenas à vida futura,
32


ao castigo dos ímpios? É possível que ela se aplique aos ímpios também, mas, na verdade, não precisamos esperar a outra vida, para vermos essas palavras de Jesus se cumprirem. Aqui mesmo e em nossos dias, as pessoas que não perdoam ou não são perdoadas vivem sofrendo com sentimentos de culpa e ressentimento. Elas vivem numa prisão, onde são torturadas por todo tipo de conflito emocional.
Deveres e Débitos
Entrelaçada a esta parábola de Jesus acha-se um quadro sobre os inter-relacionamentos humanos. O mundo foi feito para o perdão; foi feito para a graça; para o amor em todos os aspectos da vida.
A própria estrutura da natureza humana já traz dentro de si a necessidade dessas coisas que está em cada célula de nosso corpo, em cada relacionamento com outros. Fomos criados com a necessidade de graça, amor e aceitação.
Uma das definições bíblicas para o pecado é "viola­ção das leis de Deus". Quando transgredimos uma des­sas leis, estamos, num certo sentido, em débito para com elas. As palavras dever e débito vêm da mesma raiz. Quando dizemos: "Devo agir assim" ou "não devo agir assim" estamos praticamente dizendo: "Tenho es­se débito para com Deus" ou "Tenho esse débito para com essa pessoa", isto é, o débito de agir ou não agir de certa forma.
E esse princípio relacionado com a lei de Deus aplica-se também ao relacionamento com outras pes­soas. Temos deveres e débitos uns para com os outros. Muitas vezes, quando pecamos contra uma pessoa, dizemos:
  Sinto que estou em débito com ele. Ou então:
  Sinto que ela me deve desculpas.
E quando um condenado é liberto da cadeia após o cumprimento de sua pena, dizemos que ele pagou seu débito para com a sociedade.
Jesus expressou este mesmo conceito no âmago do
33


Pai Nosso, quando nos ensinou a orar: "E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como temos perdoado aos nossos devedores." Os pastores, conselheiros, ou qualquer outra pessoa que trabalhe com a alma huma­na sabem que essa questão de débitos morais acha-se presente na natureza humana de uma forma incrível. Existe em nós um sentimento de dever, de que temos um débito, uma espécie de mecanismo automático pelo qual a cobrança de dívidas entra em funcionamento. E então buscamos formas de expiar nossos erros, de pagar nossas dívidas, ou de cobrar o que os outros nos devem. Se temos raiva de nós mesmos, pensamos: " Tenho que pagar por tudo isso." Mas se sentimos raiva de outrem, então é ele quem tem de pagar. E deste modo, esse inexorável processo de dívida e cobrança entra em funcionamento, e a pessoa é entre­gue aos seus "verdugos" interiores. São os carcereiros que atuam como cobradores, nesta horrível prisão.
Alguns de nós ainda se recorda da escalação da defesa do "Rams"* de alguns anos atrás. Os quatro somados davam um total de meia tonelada de múscu­los, que simplesmente barravam os adversários. Eles eram chamados de "Os Quatro Temíveis". Jesus está ensinando que os que não perdoam e não são perdoa­dos são entregues a um outro grupo de Quatro Temí­veis: sentimento de culpa, ressentimento, esforço e aflição. Esses quatro produzem em nós conflitos, stress e toda a sorte de problemas psicológicos.
O Dr. David Belgum, ao comentar a afirmação de que quase setenta e cinco por cento das pessoas que se encontram internadas nos hospitais hoje com moléstias físicas sofrem de enfermidades que têm raiz em pro­blemas emocionais, diz que esses pacientes com essas doenças estão punindo a si mesmos, e que os sintomas físicos e os colapsos podem ser uma involuntária confisão de culpe. [Guilt: Where Psychology and Reli-gion Meet — Culpa: ponto comum entre a Psicologia e a Religião).
* Rams — time de futebol americano da cidade de Los Angeles. NT
34


As Causas dos Problemas Emocionais
Há muitos anos cheguei à conclusão de que as duas maiores causas de problemas emocionais entre os evangélicos eram as seguintes: o fato de não compre­enderem, nem receberem, nem viverem na graça e perdão incondicionais de Deus, e o fato de não dispen­sarem esse perdão e amor incondicionais a outros.
1. Não receber perdão. Muitos de nós somos como o servo da parábola. Como ele não compreendeu a oferta do rei, suplicou-lhe um adiantamento do paga­mento. E o que aconteceu? O senhor, em sua miseri­córdia, deu-lhe mais do que ele pedia, mais do que ele imaginava e desejava. Ele o liberou da dívida, per­doando todo o seu débito.
Mas o servo parece não ter ouvido o que o senhor lhe disse. Pensou que ele lhe havia concedido o que pedira. E o que ele pedira? Pedira o alargamento do prazo, pedira que tivesse paciência com ele. "Senhor, por favor, não execute minha dívida. Estenda o prazo da promissória um pouco mais, e lhe asseguro que pagarei tudo que devo." E com sua estupidez e orgu­lho, pensava que poderia pagar-lhe os dez mil talentos, se este lhe desse um prazo. Mas o senhor, em sua misericórdia, cancelou toda a dívida. Não se limitou simplesmente a dilatar o prazo. Ele rasgou a promissó­ria; cancelou o débito, e o servo ficou livre daquele compromisso, livre da ameaça da prisão.
O pobre homem nem quis acreditar em uma notícia tão auspiciosa. Na verdade, não a absorveu. Não a in­troduziu em sua vida. Não desfrutou dela... Pensou que ainda se encontrava debaixo de condenação como um devedor qualquer, e que apenas tinha ganhado um dilatamento do prazo para trabalhar mais e economi­zar, e depois pagar a dívida. Como não entendera que seu débito fora cancelado, os verdugos interiores do ressentimento, do sentimento de culpa, do esforço e da aflição começaram a atuar dentro dele. Como achava que ainda tinha aquela dívida, pensava também que ainda tinha de pagá-la, e de cobrar os débitos de seus devedores.
Muitos de nós  somos  assim.   Ouvimos   falar  da
35


maravilhosa doutrina da graça, lemos a respeito dela e acreditamos nela. Mas não vivemos de acordo com ela. Cremos na graça apenas mentalmente, mas não com o mais profundo de nosso ser, nem em nosso relaciona­mento com outros. E, no entanto, é a palavra que mais dizemos, e com mais sentimento religioso. Menciona­mos a graça em nossos credos, e falamos a seu respeito quando cantamos. Proclamamos que somos salvos apenas pela graça, por meio da fé, sendo esse fato um traço distintivo da fé cristã. Mas tudo isso se acha somente em nossa cabeça. A boa-nova do evan­gelho da graça não atingiu ainda as nossas emoções. Ainda não penetrou no nosso relacionamento com as outras pessoas. Recitamos como papagaios a defini­ção: "A graça é um favor imerecido que recebemos de Deus." Mas isso não atinge nossos sentimentos. Não afeta nossa vida. Não vamos até onde deveríamos ir.
A graça não é apenas um favor imerecido de Deus. É também algo que não podemos conquistar pelo esforço próprio, e que nunca teremos condições de retribuir. E como muitos de nós não vêem, não conhe­cem e não sentem a graça, são impelidos à trágica atitude de trabalhar, esforçar-se e tentar fazer algu­ma coisa. Na verdade estão tentando livrar-se do sentimento de culpa. Estão tentando expiar seus peca­dos e pagar seu débito. Eles lêem um capítulo a mais da Bíblia, aumentam em dez minutos o momento devo-cional, e depois saem para fazer um trabalho evange-lístico movidos por sentimentos de culpa. A salvação deles foi recebida como que por uma nota promissória.
Muitos são como um certo pastor jovem que veio ver-me certa vez. Estava com muitos problemas de relacionamento com outros, principalmente com a esposa e a família. Eu já havia conversado com a esposa dele em particular; era uma excelente pessoa — atraente, terna, carinhosa e amorosa — e o auxilia­va muito no ministério. Mas ele estava constantemente a criticá-la, a jogar a culpa sobre ela. Tudo que ela fazia estava errado. Ele se mostrava sarcástico e por demais exigente, e rejeitava suas iniciativas afetivas, recusando seu amor e afeição.  Pouco a pouco fui
36


percebendo uma coisa: ele estava destruindo o casa­mento deles.
Depois ele mesmo começou a perceber que estava prejudicando as pessoas, com seus sermões por de­mais rudes e cheios de julgamento. E realmente um pastor às vezes faz isso, não é? Ele estava despejando sua infelicidade sobre os outros.
Afinal, desesperado, veio conversar comigo. No início de nossa entrevista ele enfrentou o problema como um verdadeiro homem: jogou a culpa de tudo na esposa. Mas, após alguns momentos, resolveu ser sincero, e a dolorosa raiz de todo o problema veio à tona.
Quando estava servindo o exército na Coréia, pas­sara duas semanas de licença para descanso e recu­peração, no Japão. Nessa ocasião, estava caminhando pelas ruas de Tóquio sentindo-se muito sozinho, vazio e saudoso de casa, e acabou caindo em tentação, tendo ido a uma prostituta umas três ou quatro vezes.
Nunca conseguira perdoar-se por isso. Pedira o perdão de Deus e, mentalmente, acreditou que o recebera. Mas o senso de culpa continuou a atormen­tá-lo, e ele odiava a si mesmo. Todas as vezes que se olhava ao espelho, não suportava ver-se. Nunca falara sobre isso com ninguém e o peso estava-se tornando insuportável.
Depois ele voltou para casa e casou-se com a noi­va que esperara por ele fielmente, e aí seus confli­tos emocionais se intensificaram, pois não conseguia aceitar o perdão pleno. Não conseguia perdoar-se pelo que fizera a si mesmo e a ela, e por isso não conseguia também aceitar o amor e afeição que ela lhe oferecia com toda sinceridade. Achava que não tinha direito de ser feliz. Dizia para si mesmo: "Não tenho direito de ser feliz com minha esposa. Não tenho direito de ser feliz na vida. Tenho que pagar esse débito."
Os terríveis verdugos estavam atuando em seu interior, e ele tentava castigar a si mesmo, para sofrer e expiar sua culpa. E durante todos aqueles anos, ele estivera vivendo numa prisão, com os cobradores executando seu terrível ofício. E, como bem disse A.W.
37


Tozer, aquele jovem pastor estava vivendo na "prisão perpétua do remorso".
Como foi maravilhoso, depois, vê-lo receber o per­dão total de Deus, de sua esposa e também — o melhor de todos — o perdão de si mesmo. É claro que ele era cristão autêntico. Ele cria na graça de Deus e pregava sobre ela, mas nunca havia aceitado plenamente o perdão divino. Estava tentanto pagar sua nota promis­sória. Estava procurando fazer uma espécie de auto-expiação, com um mecanismo de senso de culpa ope­rando dentro dele.
Não podemos receber o perdão de Deus, enquanto não perdoarmos nosso irmão de todo o coração. E fico a indagar se não temos sido muito limitados em pensar que esse irmão se aplica apenas a uma outra pessoa. Quem sabe nós somos o irmão que precisa ser perdoa­do, e tenhamos que nos perdoar a nós mesmos? Isso não se aplica a nós também? O Senhor Jesus disse para perdoarmos nossos inimigos. E se nós formos nosso pior inimigo? Isso nos exclui? Aquele jovem pastor teve que compreender que perdoar a outrem significa per­doar a si mesmo também. A raiva e o ressentimento que temos contra nós, assim como a recusa em perdo­ar a nós mesmos, são tão prejudiciais e nocivos como os que sentimos contra as outras pessoas.
2. Não perdoar. Quando não conseguimos receber e aceitar o perdão e a graça de Deus, também não damos perdão, amor e graça incondicionalmente a nosso próximo. E o resultado disso é uma deterioração de nosso relacionamento com os outros, com o surgi­mento de conflitos emocionais entre nós e eles. Quem não recebe perdão, também não perdoa aos outros, e esse círculo vicioso se fecha com os rancorosos, que também não podem ser perdoados.
Como essa parábola é trágica! O servo, que não compreendera que fora totalmente perdoado, pensava que ainda tinha de sair por ali cobrando daqueles que lhe deviam, para que pudesse saldar a dívida com seu senhor, dívida que já havia sido cancelada. Parece que ele foi para casa, verificou a escrita de seus livros e disse consigo mesmo:   "Tenho  que  receber  esse
38


dinheiro, porque disse ao meu senhor que lhe pagaria tudo." E o que aconteceu? Agarrou o primeiro colega que encontrou, apertou-lhe a garganta e disse:
  Pague-me o que me deve; dê-me aqueles cem
denários.
Pense nisso. Ele achava que tinha recebido uma dilatação do prazo para sua nota promissória, mas não queria dar àquele homem nem mais um minuto, pois dizia:
Pague-me agora, senão vou colocá-lo na cadeia.
Como o pobre homem não tinha com que pagar,
teve que ir para a prisão. Positivamente essa não é uma maneira muito correta de se manter relaciona­mento com outrem.
E o círculo vicioso torna-se ainda mais vicioso. Quem sofre rejeição, passa a ser um rejeitador de outros. Quem não recebe perdão também não perdoa. Quem não recebe graça não concede graça. Aliás, a conduta deles, por vezes, é totalmente desastrada. E a conseqüência disso são conflitos emocionais e o rompi­mento nas relações com os outros.
Veja como você aplicaria isso às pessoas que participam de sua vida de modo significativo: os pais, que o magoaram quando era criança; os irmãos que falharam com você, quando precisou de apoio; ou que zombaram de você ou o diminuíram de alguma forma; um amigo que o traiu; uma namorada que o rejeitou; seu cônjuge, que havia prometido amá-lo, honrá-lo e apreciá-lo, mas que em vez de fazer essas coisas, só fica a implicar com você, a culpá-lo e a infligir-lhe sofrimentos. Todos esses lhe devem alguma coisa, não é?
Eles lhe devem amor e afeição, segurança e afirma­ção, mas, como você se sente em dívida e culpado para com eles, como se sente inseguro, ressentido e aflito, como se vê rejeitado e sem perdão, por seu lado você se torna rancoroso e rejeita os outros. Você não recebeu a graça, então como pode dá-la a outros? E como se sente atormentado, magoa a outros também. Você tem que cobrar pelas suas mágoas, pelos seus sofrimentos. Tem que fazer com que todos que lhe
39


infligiram algum sofrimento paguem o que lhe devem. Você é um cobrador de tristezas.
Casamento em Dívida
Muitas pessoas casadas não deixam que Deus lhes dê o auxílio que só ele pode dar. E então pedem a seus cônjuges, a outros seres humanos, para que façam o que não podem fazer. Os homens, se se esforçarem, podem ser bons maridos, e as mulheres também podem ser boas esposas. Mas são péssimos deuses. Não foram criados para isso. E todas as maravilhosas promessas que as pessoas fazem no dia do casamento — "Prome­to amá-lo, respeitá-lo e honrá-lo em todas as adversi-dades da vida" — só são possíveis, quando o coração está seguro no amor de Deus, na sua graça e seu cuidado. Somente uma alma perdoada e cheia da graça divina pode cumprir tais promessas. Na verda­de, quando uma pessoa diz aquelas palavras, o que está querendo expressar é o seguinte: "Tenho muitas carências emocionais, um grande vazio interior e muitas dívidas a pagar, e vou lhe dar a magnífica oportunidade de preencher este meu "vale" e cuidar de mim. Não sou maravilhoso?"
O psicólogo compara este tipo de conduta a um carrapato que pica um cachorro. Ele não está nem um pouco interessado no bem do cachorro; o tempo todo ele está só sugando. E, infelizmente, em alguns casa­mentos, os dois cônjuges só querem receber, e a relação deles é como se houvesse dois carrapatos, sem cachorro. Dois sugadores e nada para ser sugado.
Faz alguns anos fui procurado por um casal. Esta­vam casados havia quinze anos. Eram quinze anos de um pingue-pongue conjugai. Todas as vezes que ele fazia pingue ela fazia pongue, ou vice-versa. Eles alternavam entre si jogadas de ataque e defesa. Quan­do estávamos conversando os três, primeiro tivemos que remover algumas cascas de teologia, para trazer às claras as decepções, mágoas e ressentimentos que tinham um contra o outro. Ela se casara com ele, por causa de sua liderança espiritual — fora um rapaz
40


muito popular na escola. Parecia uma pessoa discipli­nada, firme, trabalhadora — um homem que iria fazer grandes coisas por Deus.
Imagine-se o choque que ela teve ao descobrir que ele era indeciso, indisciplinado, preguiçoso e procras-tinador. Com a raiva que teve, ela se tornou como o servo da parábola, e como que o agarrava pela garganta dizendo: "Você me enganou. Você me deve todas as expectativas que tinha quando me casei com você." Ela o via como uma pessoa que lhe devia alguma coisa. E durante aqueles quinze anos, com todas as suas implicâncias, ela estava realmente que­rendo dizer: "Pague-me tudo que me deve."
Mas, por outro lado, ele havia-se casado com ela por sua bela aparência, pelo seu cuidado com as coisas e o amor à ordem. Imagine-se a decepção dele quando descobriu que ela era desmazelada com a casa, nem cuidava de seus cabelos, roupas e aparên­cia de um modo geral. Ele se sentiu como se tivesse sido traído por ela. "Você me deve essas coisas, por que foi o que me prometeu durante o namoro, pois eu pensava que você fosse assim. Você me prometeu essas coisas." Desse modo, ele a estava agarrando pelo pescoço e, com suas palavras sarcásticas e cortantes, estava realmente dizendo: "Pague-me o que me deve. Você não fez jus à sua nota promissória."
E cada um deles tinha passado aqueles quinze anos esperando que o outro se modificasse. Ah, como é trá­gica essa relação entre aqueles que se professam con­vertidos! Somos cobradores de dívidas. Cobramos as tristezas que sofremos. E por quê! Porque não compre­endemos que nosso débito já foi totalmente cancelado, que já está terminado. E continuamos a nos esforçar bastante, embora Deus já tenha rasgado, no Calvário, a nossa nota promissória.
Certa vez preguei sobre esse assunto numa confe­rência de aconselhamento, e após a reunião, quando ia saindo pelo corredor, uma senhora agarrou meu braço e disse:
— Eu nunca tinha percebido isso. Mas é o que venho fazendo com meus filhos nesses dezoito anos —
41


cobrando dívidas, pedindo-lhes que me paguem o que me devem, em vez de dar-lhes um amor incondicional. E quantos traumas isso causou.
Três Testes
Quer se submeter a três testes aqui comigo? Vamos ver se você precisa perdoar a alguém, inclusive a si mesmo.
1. Primeiro, há o teste do ressentimento. Está ressentido contra alguém? Há alguma pessoa que ainda não conseguiu "soltar"? Pode ser um dos pais, um irmão ou irmã, uma namorada ou namorado, cônjuge, amigo, colega de serviço, ou uma pessoa que o magoou na infância, alguma professora do primário, ou alguém que abusou sexualmente de você quando pequeno.
2.        O teste da responsabilidade é um pouco mais sutil. Ê mais ou menos assim: "Se pelo menos a Maria, ou José ou João, ou meus pais, ou minha esposa, ou meus filhos, ou a vida, ou Deus — se ao menos eles tivessem me pagado o que me deviam, hoje eu não estaria com essa vida desgraçada. Não teria esses problemas de personalidade. Se eles tivessem me pagado, então eu poderia pagar minha dívida para com meu senhor."
Durante muitos anos eu cometi esse erro de atirar a culpa nos outros. Todas as vezes que fracassava, ou caía, ou falhava, ouvia uma vozinha interior, muito consoladora, que dizia: "Não se preocupe, não, David. Não foi culpa sua. Você teria se saído bem, se não fosse por..."
Você assume a responsabilidade de seus fracassos e erros, ou lá no seu interior um gravador é ligado todas as vezes e diz: "Eles me fizeram assim. Foi ele quem fez; foi ela quem fez isso"? Em muitos casos, dar perdão a outrem e assumir a responsabilidade de nossos erros são as duas faces de uma mesma moeda, e só podem ocorrer ao mesmo tempo.
3.  Outro teste bastante sutil é o da reação contra
uma pessoa que nos lembra outrem.
Você às vezes se
42


vê reagindo contra uma pessoa, só porque ela o faz lembrar outra? Pode ser que você não goste do modo como seu marido castiga seus filhos, porque isso lhe recorda seu pai, que era exagerado nesse ponto. E isso ocasiona um conflito. Pode ser também que não goste de determinado vizinho, ou se mostre sempre irritadiço e ressentido com certo colega de trabalho. Por quê? Porque existe alguém a quem você nunca perdoou. E sua reação para com este que o faz lembrar-se desse alguém a quem não perdoou, é um ressentimento contra ele.
Como Resolver o Problema das Dívidas
Existe um modo bíblico de resolvermos o problema das mágoas recebidas no passado. E o método divino ultrapassa o ato de perdoar e abandonar os velhos ressentimentos. Deus toma esses pecados, fracassos e mágoas que ocorreram no passado e os envolve em seu elevado propósito para nós, com o objetivo de transfor­má-los.
A maior ilustração desse fato é a própria cruz. Ali, Deus tomou um ato que, do ponto de vista humano, seria a pior injustiça que se poderia praticar e a tragédia mais cruel que já houve no mundo, e fez dele o mais sublime dom que um homem pode receber — a salvação.
Vemos uma ilustração disso na história de José, que foi brutalmente maltratado por seus irmãos. Mais tarde, quando esses irmãos tiveram que se inclinar diante dele, que era então o governador, ele não fez nenhuma cobrança, não reclamou nada. José não estava preocupado em cobrar sua dívida. E ele até sabia que eles iriam ter dificuldade em perdoar a si mesmos, e por isso disse: "Não temais; acaso estou eu em lugar de Deus? Vós, na verdade, intentaste o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida." (Gn 50.19,20.)
Você faz parte de uma comunidade cristã onde não há dívidas? Seu casamento é um relacionamento sem
43


cobrança de dívidas? Sua família também tem um relacionamento assim? Toda igreja deveria ser uma sociedade sem cobranças, onde todos se amam por serem amados. Onde todos se aceitam por serem aceitos, onde todos temos graça uns para com os outros, pois desfrutamos da alegria de saber que o Mestre rasgou o registro das dívidas que havíamos contraído sem poder pagar. Elas foram canceladas. Ele rasgou tudo. O que ele fez não foi acrescentar um determinado juro e depois dizer: "Pois bem, dou-lhe um prazo maior para pagar."
E como ele nos livrou de nossa dívida, também podemos libertar a outros, dessa forma colocando em ação as forças do amor e da graça. O apóstolo Paulo resumiu tudo em poucas palavras: "A ninguém fiqueis devendo cousa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros." (Rm 13.8.)
Jesus disse: "De graça recebestes, de graça dai." Neste versículo, ele empregou termos com a mesma raiz da palavra dom, então essa tradução literal seria assim: "Dado vos foi dado; dado dai." (Mt 10.8.]

44


"Tendo, pois, a Jesus, o Filho de Deus, como grande sumo sacerdote que penetrou os céus, conservemos firmes a nossa confissão. Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, antes foi ele tentado em todas as cousas, à nossa semelhança, mas sem pecado. Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna."
(Hb 4.14-16.J
"Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte, e tendo sido ouvido por causa da sua piedade, embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas cousas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem."
[Hb 5.7-9.)


3 O Médico Ferido
Se quisermos colocar a declaração de Hebreus 4.15 em forma positiva, diremos o seguinte: "Porque temos um sumo sacerdote que pode compadecer-se das nos­sas fraquezas." No original, a palavra que aqui é traduzida como fraquezas é um termo relacionado no Velho Testamento com os sacrifícios oferecidos pelos sacerdotes. A fraqueza era, basicamente, uma man­cha física, um defeito. Era uma imperfeição ou defor­midade, no animal ou no homem. Se um homem da família de Arão possuísse um defeito, apesar de ser dessa família, não poderia exercer o cargo de sacerdo­te. Aquela falha o desqualificava, e não podia entrar na presença da santidade de Deus (Lv 21.16-24). Da mesma forma, os animais que eram trazidos para ofertas e holocaustos tinham que ser sem mancha ou imperfeição. Existem dezenas de passagens no livro de Levíticos que deixam bem claro que um animal com defeito não podia ser oferecido a Deus. Tanto a oferta como aquele que ofertava tinham que estar livre de fraquezas.
No Novo Testamento também vemos o uso figurati­vo dessa palavra fraqueza. Trata-se de uma metáfora, uma figura de linguagem. A palavra empregada no grego é a forma negativa de sthenos, que significa força. É um vocábulo formado com esse termo e o
47


prefixo a. Quando colocamos a letra a antes de uma palavra passamos seu sentido para a negativa. Por exemplo, teísta é uma pessoa que crê em Deus; se colocarmos um a antes dela, temos o termo ateísta, pessoa que não crê em Deus. Se colocarmos um a no início da palavra sthenos, que em grego significa "força", obtemos a palavra que tem o sentido de fraqueza, astheneia, "falta de força, ausência de forças, deformidade".
No Novo Testamento, a palavra quase não é empre­gada com um sentido puramente de força física. Ela se refere mais a uma fraqueza mental, moral e emocio­nal, a uma ausência de forças. As fraquezas, por si mesmas, não constituem pecado, mas minam nossa resistência, tornando-nos mais vulneráveis à tentação. No Novo Testamento, a palavra fraqueza aplica-se a certos aspectos da natureza humana que podem pre-dispor-nos ou inclinar-nos a pecar, por vezes até mesmo sem uma decisão consciente de nossa parte.
Dos livros do Novo Testamento, o livro de Hebreus é o que mais se assemelha ao de Levítico, mostrando que o sistema de holocaustos nele apresentado tem seu cumprimento em Jesus Cristo, nosso Sumo-Sacerdote. Esse cumprimento aplica-se também à questão das fraquezas dos sacerdotes. O sacerdote do Velho Testa­mento tinha fraquezas porque partilhava da sorte de toda a humanidade. Portanto, quando ele executava o sacrifício, estava fazendo-o por si mesmo, para enco­brir todas as suas imperfeições, bem como apresenta­va uma oferta pelo seu povo. Entretanto, como ele tinha fraquezas, entendia bem as fraquezas dos ou­tros, e os tratava com mansidão. Executava seu ofício de sacerdote com toda a compreensão. Pois também ele estava sujeito às mesmas fraquezas que temos e que nos predispõem à tentação e ao pecado.
O escritor do livro de Hebreus aplica essa figura ao nosso grande Sumo-Sacerdote e Mediador, o Senhor Jesus Cristo. Como ele nunca tinha pecado, como nunca tinha cedido à tentação — o que não era o caso dos sacerdotes do Velho Testamento — nunca necessi­tara executar o holocausto por si mesmo. Mas já que
48


fora tentado, já que fora provado em todas as coisas como nós o somos, temos um grande Sumo-Sacerdote que. pode "compadecer-se das nossas fraquezas".
Se ele apenas entendesse o fato de termos fraque­zas, já seria o suficiente. Mas a situação é ainda melhor. Ele conhece a sensação que temos em nossas fraquezas — não apenas as deformidades, não apenas a fraqueza em si, não apenas os traumas emocionais e conflitos interiores, mas também a dor que tudo isso nos inflige. Ele compreende as frustrações, afli­ções, depressões, mágoas, os sentimentos de abando­no e solidão, isolamento e rejeição. Aquele que conhe­ce a sensação que temos em nossas fraquezas experi­menta toda a gama de emoções que acompanham nossas enfermidades e deformidades.
E qual é a prova disso? Em que se baseia o autor de Hebreus para afirmar que Jesus sabia como nos senti­mos por causa de nossas fraquezas? "Nos dias de sua carne", isto é, quando Jesus se achava entre nós, ofereceu, "com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas" (Hb 5.7). E essa oração foi feita em silên­cio e tranqüilidade? Não. Ele ofereceu "com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte, e tendo sido ouvido por causa da sua piedade, embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas cousas que sofreu". (Hb 5.7,8.)
Isso nos fala do Getsêmani, da sua paixão e sofrimento a cruz de nosso Senhor, e como que nos diz: "Aí está; ele passou por tudo isso. Ele sabe o que é chorar com muitas lágrimas. Sabe o que é orar a Deus em prantos. Ele lutou com emoções que quase o despedaçaram. Ele conhece isso. Já passou por isso e pode sentir o que sentimos. Ele sofre conosco."
De todas as palavras que descrevem a Encarnação de Deus, a maior delas é Emanuel, que quer dizer "Deus conosco". Deus está nisso conosco. Ou melhor ainda, tendo passado pelas mesmas coisas, sabe en­trar no problema e senti-lo conosco. É por isso que podemos nos aproximar com ousadia, podemos chegar perto de Deus com toda a confiança. Deus não nos diz: "Venha com a sua culpa",  ou "Venha com a sua
49


vergonha". Não precisamos pensar assim: alguma coisa está errada comigo, pois estou tendo esta de­pressão. Estou caído. São idéias cruéis que nós mes­mos, às vezes, infligimos uns aos outros. Elas não são bíblicas.
Não estamos chegando diante de um pai neurótico que só quer ouvir falar bem de seu filho. Não estamos nos aproximando de um pai que diz:
— Pare; não sinta essas coisas; é errado. Não chore. Se continuar chorando, vou dar-lhe um bom motivo para chorar mais.
Estamos diante de um Pai celeste que compreende nossos sentimentos e nos chama para que lhe falemos deles. Por isso, podemos aproximar-nos do trono da graça com toda a confiança, sabendo que encontrare­mos graça e misericórdia diante dele, nos momentos de dificuldade. Podemos nos achegar a ele quando preci­sarmos de perdão, quando sentirmos o peso da culpa de nossos pecados. E podemos nos aproximar também, quando estivermos sendo torturados e atormentados pelo reconhecimento de nossas fraquezas.
O Jardim
Para entendermos bem o preço que o Salvador teve de pagar para tornar-se nosso Médico, precisamos percorrer com ele os caminhos da sua paixão e sofri­mento, que estão descritos nos Evangelhos, Salmos e no livro de Isaías.
Venha comigo ao jardim do Getsêmani. Veja o preço pago pelo nosso Salvador para ser Emanuel, Deus conosco. Ouça a oração que ele fez. Será que você consegue escutá-la, como se a estivesse ouvindo pela primeira vez? Ele "começou a entristecer-se e a angustiar-se. Então lhes disse: A minha alma está profundamente triste até à morte." (Mt 26.37,38.)
Espere um pouco aí, Jesus. O que o Senhor disse? "Minha alma está profundamente triste até à morte?" Está querendo dizer que o Senhor naquela hora passou por sofrimentos, sensações e sentimentos de agonia tão fortes que até desejou morrer? Isso quer dizer
50


então, Senhor, que entende quando estou tão deprimi­do que não quero nem viver mais?
Vejamos agora o Salmo 22, apelidado o "salmo do desamparo": "Derramei-me como água, e todos os meus ossos se desconjuntaram; meu coração fez-se como cera, derreteu-se-me dentro em mim. Secou-se o meu vigor como um caco de barro, a língua se me ape­ga ao céu da boca; assim me deitas no pó da morte." (SI 22.14,15.)
E o Salmo 69 é outro desses textos: "Salva-me, 6 Deus, porque as águas me sobem até a alma" (v. 1). "Estou nas profundezas das águas e a corrente me submerge" (v. 2). "Estou cansado de clamar" (v. 3). "O opróbrio partiu-me o coração, e desfaleci; esperei por piedade, mas debalde; por consoladores, e não os achei" (v. 20). "Então, nem uma hora pudestes vós vigiar comigo?" (Mt 26.40.) Ele implorou aos seus amigos três vezes, mas sem resultado. Por fim "os discípulos todos, deixando-o, fugiram" (Mt 26.56).
Quem já enfrentou a agonia de uma terrível solidão, ou de um vazio patológico, quem já experimen-tou as mais negras crises de depressão, sabe que, quando estamos nesse abismo, a coisa mais difícil para se fazer é orar, pois não sentimos a presença de Deus. Pois eu quero garantir-lhe que ele sabe, entende é sente suas fraquezas. Ele vive todas as suas sensa­ções, pois já passou por tudo isso.
O Julgamento
Acompanhemo-lo agora até o local do julgamento, onde teve que ouvir falsos testemunhos a seu respeito. Você já foi acusado injustamente? Conhece a dor que isso nos causa? "Então uns cuspiram-lhe no rosto e lhe davam murros, e outros o esbofeteavam..." (Mt 26.67.) "Os que detinham Jesus zombavam dele, davam-lhe pancadas." (Lc 22.63.)
Muitas vezes, quando estou conversando com pes­soas dominadas por uma mágoa profunda, ou por um forte ódio ou sofrimento, elas me olham com um rosto impassível, sem o menor vislumbre emocional. Mas,
51


quando começo a penetrar mais fundo e pergunto: "Qual é a pior imagem que você tem na memória? Qual a que lhe traz mais sofrimento?" logo se nota uma mudança no semblante. No início é uma mudança leve, mas depois os olhos se enchem de lágrimas, que escorrem pelo rosto abaixo, e daí a pouco elas choram. Até mesmo homens fortes, grandões, soluçam pelo sofrimento e raiva.
— Eu sei qual é, dizem. Lembro muito bem. É a imagem de quando meu pai me batia de chicote e me dava pancadas na cabeça. Era quando mamãe me dava um tapa.
Nada é mais danoso para a personalidade humana do que um tapa no rosto. É tão humilhante, tão degradante, tão aviltante. Destrói em nós um senti­mento básico de nossa personalidade.
Mas o nosso Médico ferido compreende isso. Ele sabe o que é levar pancadas na cabeça, tapas no rosto. Ele conhece as sensações que temos, que brotam em nós por causa desse tipo de agressão. Ele sente os problemas que nos afetam. E quer nos curar. Quer que saibamos que não está irado conosco por causa dessas sensações. Ele as compreende muito bem.
A Cruz
Vamos um pouco mais adiante, vamos à própria cruz. Zombaram dele, meneando a cabeça e dizendo: "Salva-te a ti mesmo, se és Filho de Deus! E desce da cruz!" (Mt 27.40.) Debocharam dele, protestaram con­tra ele, zombaram. Debochar, menear a cabeça, zom­bar, reclamar, criticar — todas essas palavras nos trazem à memória as humilhações e sofrimentos da adolescência. Um certo homem acha que os anos da adolescência, e principalmente o relacionamento na escola, são tão traumatizantes para o jovem, que escreveu um livro intitulado ís There Life After High School? (Há vida após o Ginásio?)
Fico admirado com as dolorosas lembranças que muitos adultos me relatam acerca de seus anos de adolescência. Geralmente as palavras que mais ouvem
52


e que lhes vêm à lembrança dos anos da adolescência são de "gozação"; tais como :"sabichão", "Bolão", "desajeitado", "espinhento", etc. Ou então são lem­branças dos grandes óculos de armação antiquada, ou dos aparelhos nos dentes. Cada um sabe qual é seu problema. A crueldade das crianças uma com as outras é coisa da vida.
Jesus sabe quando somos rejeitados por um amigo, desprezados por um namorado ou namorada, critica­dos pela nossa turma. É como disse Isaías: "Não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso." (Is 53.2,3.)
É; ele foi um Homem de dores que sabe o que é padecer. Se você está sofrendo, ele também está sentindo o mesmo. E se é uma pessoa solitária — um viúvo, viúva ou divorciado — ele sabe o que é estar sozinho, sabe o que é ter a impressão de que uma parte de nós parece ter sido arrancada.
Pesquisas têm mostrado que os dois maiores fato­res provocadores de stress para o corpo, mente e emoções são a morte de um cônjuge, ou a separação dele pelo divórcio ou desquite. De certo modo, a separação é pior. A morte de um cônjuge, embora seja dolorosa, é como uma ferida limpa. O divórcio ou desquite muitas vezes causa uma ferida infecta, puru-lenta, latejando de dor. Jesus entende, quando uma pessoa tem que se esforçar para ser pai e mãe para seus filhos.
Mas será que ele conhece também a pior de todas as nossas fraquezas, que é quando não conseguimos nem orar? Quando nos sentimos abandonados pelo próprio Deus? O Credo Apostólico diz: "Desceu ao inferno." Quando Cristo estava na cruz, os céus se tornaram como que de ferro para ele. Tornaram-se horrivelmente surdos, quando ele foi cortado da terra dos viventes. E ele gritou pedindo socorro, em seu último instante de agonia, mas não recebeu resposta:


"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que se acham longe de meu salvamento as palavras de meu bramido? Deus meu, clamo de dia e não me respondes." (SI 22.1,2.) Deus compreende o grito de desamparo. Ele sabe as sensações que temos em nossas fraquezas.
Quando os credos antigos afirmam que Cristo des­ceu ao inferno, querem dizer que ele conheceu todos os temores, horrores e sensações de aflição que nós experimentamos nos momentos em que nos encontra­mos no nível emocional mais baixo, devido a uma rejeição, abandono e depressão. Isso significa que, assim sendo, podemos levar a ele todas as nossas sensações, mesmo as mais terríveis.
E não precisamos chegar diante dele com sentimen­tos de culpa e vergonha, mas sim com toda a confiança e ousadia, sabendo que ele não somente sabe o que sentimos, mas quer nos curar. E ele não nos deixou sozinhos, pois o Espírito Santo nos ajuda em nossas enfermidades (Rm 8.26). A experiência que Jesus Cris­to teve na condição de ser humano acha-se agora conosco na pessoa do Espírito Santo, que nos ajuda em nossas fraquezas, havendo uma colaboração mútua, para a cura delas.
Joni Eareckson era uma jovem bela, cheia de vida e ativa. Certo dia, ao mergulhar numa lagoa, bateu com a cabeça numa pedra. Sofreu lesões que a deixaram paralítica, e hoje é paraplégica. Ela pinta quadros segurando o pincel com os dentes. Seu testemunho cristão já correu o mundo todo através de seus livros e do filme que foi feito sobre sua vida.
Joni compreendeu toda a extensão de dependência quando, certo dia, desesperada, pediu a uma amiga que lhe desse alguns comprimidos para suicidar-se, mas esta lhe recusou. Então ela pensou: "Não posso nem me matar/"
A princípio, a vida foi um inferno para ela. Seu espírito era abalado por dores, ódio, amargura e mágoas. Embora não sentisse dores físicas, tinha sensações como que de agulhadas nos nervos a per­correr-lhe todo o corpo. Isso durou três anos.
54


Então, certo dia, teve início em sua vida uma transformação radical, que fez dela uma cristã bela e radiante. Cindy, sua melhor amiga, estava ao lado de sua cama tentando desesperadamente consolá-la. Em dado momento, ela disse algo que só poderia ter sido inspirado pelo Espírito Santo:
Joni, Jesus sabe o que você está sentindo. Você
não é a única pessoa paralítica. Ele também esteve
paralisado.
Joni olhou para ela meio enfezada.
  Que é que você está querendo dizer com isso?
  É verdade, é verdade, Joni. Lembra-se de que ele foi pregado na cruz? As costas estavam feridas pelas chicotadas, assim como as suas também ficam feridas às vezes. Ah, ele deve ter tido muita vontade de remexer-se um pouco, para mudar de posição, para aliviar o peso do corpo, mas não podia se mover. Ele sabe o que você está sentindo.
Quando aquelas palavras de Cindy penetraram na mente de Joni, teve início toda a transformação. Ela nunca pensara naquilo antes. O Filho de Deus havia sentido as agulhadas que torturavam seu corpo. Ele conhecera aquela sensação de desamparo que ela estava sentindo.
Mais tarde ela iria explicar: "Foi então que Deus me pareceu incrivelmente próximo de mim. Eu já tinha percebido o bem que o amor de meus amigos e familia­res me fazia. Agora começava a compreender que Deus também me amava." (Where is God When it Hurts — Onde está Deus quando sofremos — de Philip Yancey.)
Muitas vezes, agradecemos a Deus pelo fato de Jesus haver levado sobre si os nossos pecados na cruz. Mas precisamos lembrar outra coisa. Em sua plena identificação com nossa condição humana, principal­mente quando se achava na cruz, ele levou sobre si todos os nossos sentimentos, e carregou as nossas sensações de fraqueza, para que não precisássemos ter que levá-las sozinhos.
Há um hino que expressa bem esse aspecto do sacrifício de Cristo: "Vale da Solidão".
55


Jesus andou pelo vale da solidão E teve que andar por ele sozinho Ninguém poderia percorrê-lo em seu lugar Ele teve que percorrê-lo sozinho.
Você também tem que passar por suas provações Tem que suportá-las sozinho; Ninguém poderá suportá-las por você Você tem que suportá-las sozinho.
Quando passamos pelo vale da solidão
Não andamos por ele sozinhos
Pois Deus mandou seu Filho para caminhar ali
conosco; Não estamos sozinhos.
(Hymns for the Family of God — Hinos para a família de Deus.)
"Pois não é um ser sobre-humano esse nosso Sumo Sacerdote, incapaz de compreender a nossa fraqueza. Não; como nós, experimentou plenamente toda a espé­cie de tentação que nos assalta." (Hb 4.15 — Cartas às Igrejas Novas.) É esta certeza que nos fornece as bases para termos esperança e sermos curados. O fato de sabermos que Deus não apenas sabe de tudo e nos ama, mas também compreende plenamente o que passamos é um fator altamente terapêutico para a cura de nossos traumas emocionais.
56


"Quanto ao mais, sede fortalecidos no Senhor e na força do seu poder. Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo; porque a nossa luta não ê contra o sangue e a carne, e, sim, contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes. Com toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito, e para isto vigiando com toda perseverança e súplica por todos os santos. "
[Ef 6.10-12, 18.)
"Para que Satanás não alcance vantagem sobre nós, pois não lhe ignoramos os desígnios. "
(2 Co 2.11.)


4
A Mais Mortífera Arma de Satanás
A imagem que a Bíblia nos oferece de Satanás é bem diferente da popular. Na Bíblia ele não é apresen­tado como essa personagem cômica das histórias em quadrinhos, com chifres, cauda, tridente, ridicula-mente vestida com uma malha vermelha. Na verdade, Satanás é um adversário inteligente, ardiloso e muito perigoso (1 Pe 5.8).
E como ele pertence ao mundo espiritual, conhece as nossas fraquezas. Ele conhece as nossas enfermida­des, e as utiliza contra nós, sempre com grandes vantagens. A Bíblia não fala muito do poder de Sata­nás, pelo menos não tanto quanto fala de sua sutileza, artimanha e falsidade. Ele usa de astúcias e trapaças, de estratagemas e planos bem elaborados. Sabe explo­rar nossas fraquezas no sentido de enfraquecer-nos, desanimar-nos, fazer-nos fracassar e abdicar da vida cristã. A Bíblia o descreve como um leão que ruge, andando ao nosso redor, procurando alguém para devorar (1 Pe 5.8). Paulo também falou dos malignos poderes das trevas contra os quais estamos em luta (Ef 6.12). E é nas trevas que somos facilmente atacados e iludidos.
Uma Auto-Imagem Negativa
Algumas das armas mais fortes do arsenal de Satanás  são de natureza psicológica. O medo é uma
59



delas. A dúvida é outra. Outras são raiva, hostilidade, preocupação e, naturalmente, o senso de culpa. O constante sentimento de culpa é muito difícil de ser removido; ele parece permanecer em nós mesmo de­pois que nos convertemos e suplicamos o perdão de Deus e aceitamos sua graça.
Muitos cristãos parecem ter um sentimento de autocondenação suspenso sobre a cabeça, como uma densa névoa de poluição. Assim estão sendo derrota­dos pela mais poderosa arma psicológica que Satanás usa contra os cristãos. Essa arma tem a eficácia de um míssil mortal. O nome dela? Auto-imagem negativa.
A maior arma psicológica de Satanás é um senti­mento de inferioridade, incapacidade e falta de auto-estima, que se acha enraizado no mais profundo de nosso ser. E este sentimento está aprisionando muitos de nós, muito embora eles possam ter tido experiências espirituais maravilhosas, embora tenham grande fé e bom conhecimento da Palavra de Deus. Apesar de entenderem perfeitamente sua condição de filhos de Deus, acham-se como que amarrados e tensos, acor­rentados por terríveis complexos de inferioridade, presos a um profundo sentimento de que não valem nada.
Existem quatro maneiras pelas quais Satanás apli­ca essa arma, que é a mais mortal de todas as suas armas emocionais e psicológicas, com o objetivo de derrotar-nos e fazer-nos fracassar.
1. Uma auto-imagem fraca paralisa nosso poten­cial. Tenho visto o terrível impacto dos sentimentos de inferioridade em todos os lugares onde tenho exercido meu ministério. Tenho presenciado trágicos desperdí­cios de potencial humano, vidas diluídas, talentos perdidos, com grande prejuízo de uma verdadeira mina de capacidade e possibilidades humanas. E tenho chorado interiormente.
Sabe que Deus também chora por causa disso? Ele fica mais entristecido do que irado com essas coisas. Ele chora pela paralisação de nosso potencial causada por uma imagem própria negativa. E o preço é muito alto, pois parece que todos estamos lutando contra


essas coisas. São muito poucos os que conseguem superar o tormento da dúvida quanto a seu próprio valor, as arrasadoras decepções quanto à sua identi­dade e quanto ao seu futuro. Uma auto-imagem fraca pode começar no berço, acompanhar-nos durante os primeiros anos da escola e intensificar-se na adoles­cência. Depois que nos tornamos adultos, ela parece se assentar sobre nós como uma névoa densa, que cobre muitas pessoas, dia a dia. Há momentos em que parece se dissipar um pouco, mas sempre retorna, como que tentando envolver-nos, sufocar-nos.
Infelizmente isto é uma praga que afeta a muitos cristãos. O psicólogo cristão Jim Dobson, em uma mensagem gravada em fita intitulada "A Guerra Psico­lógica de Satanás", conta que fez uma pesquisa com um grande grupo de mulheres. A maioria delas era casada, tinha saúde excelente e sentia-se feliz. De acordo com o depoimento delas, tinham filhos felizes e segurança financeira. Nessa mesma pesquisa, o Dr. Dobson citava dez causas de depressão, e pediu a essas mulheres que as numerassem na ordem em que afetavam sua vida. A lista que lhes entregou foi a seguinte:
ausência de romantismo no casamento
conflitos com sogros ou cunhados
auto-imagem negativa
problemas com os filhos
dificuldades financeiras
solidão, isolamento e tédio
problemas sexuais no casamento
problemas de saúde
cansaço e pressões de tempo
envelhecimento
As mulheres deviam indicar a ordem certa em que essas coisas provocam depressão, começando pela mais grave. Sabe qual delas veio em primeiro lugar na lista, à frente de todas as outras? Auto-imagem negati­va. Cinqüenta por cento das mulheres, que eram todas convertidas, a colocaram em primeiro lugar; oitenta por cento delas a colocaram entre as duas ou três primeiras. Está vendo quanta perda de potencial emo-
61


cional e espiritual? Essas mulheres estavam lutando com depressões que provinham principalmente de sen­timentos de desvalor, que as deixavam abatidas.
Jesus contou uma parábola sobre os talentos. O homem que tinha apenas um talento ficou paralisado por seus temores e sentimentos de incapacidade. Ti­nha tanto medo de fracassar, que não quis fazer investimentos com seu talento, mas enterrou-o no chão para ficar mais seguro. Sua vida era uma série de bens congelados, paralisados pelo temor de ser rejeitado por seu senhor, pelo temor de fracassar, temor de ser comparado com os outros dois que estavam efetuando investimentos, temor de correr riscos. Ele fez o mesmo que fazem muitas pessoas que não têm uma boa imagem própria — nada. E é exatamente isso que Satanás quer que façamos — que fiquemos tão tolhi­dos que acabemos imobilizados, congelados, paralisa­dos, acomodando-nos a um tipo de vida e trabalho que se acha muito aquém de nossas reais possibilidades.
2. Uma auto-imagem negativa destrói nossos so­nhos. É provável que o leitor já tenha ouvido a seguinte definição: "Os neuróticos são pessoas que constróem castelos no ar; os psicóticos são os que se mudam para eles, e os psiquiatras, os que recebem o aluguel."
Entretanto não estou falando aqui de devaneios ou de sonhos fantasiosos. Não podemos viver com sonhos; não podemos viver de sonhos, mas vivemos peJos nossos sonhos. Uma das características do Pentecostes profetizado por Joel e cumprido no livro de Atos era que, quando o Espírito Santo fosse derramado, os jovens teriam visões e os velhos teriam sonhos (At 2.17). O Espírito Santo nos inspira a ter sonhos auda­ciosos, a ter visões do que Deus quer realizar para nós e em nós, e, mais que tudo, através de nós. "Não havendo profecia o povo se corrompe." (Pv 29.18.) É verdade, e quando temos uma visão muito enganosa de nós mesmos, com uma imagem própria muito baixa, julgando-nos inferiores e inaptos, certamente nos des­truiremos. Assim nossos sonhos morrem, e o grande plano de Deus para nossa vida nunca se realiza.
62


A melhor ilustração deste fato no Velho Testamento acha-se em Números capítulos 13 e 14. Deus tinha um plano para o seu povo, um sonho belo e audacioso. Ele colocara no coração deles a imagem de uma terra prometida, uma terra boa, abundante em leite e mel, que seria possessão deles.
Deus os conduziu até os limites dessa terra prome­tida, para a realização do audacioso plano que tinha para eles. Moisés recebeu ordem de Deus para man­dar à terra um grupo de reconhecimento militar, para espiar o lugar. Essa é a primeira menção histórica de uma CIA — a Canaan Information Agency (Agência de informação de Canaã). E ele enviou a nata do povo, os melhores homens de cada tribo. E esperava que as realidades encontradas na terra viessem a confirmar os sonhos e promessas de Deus. E até certo ponto isso aconteceu, pois os espias disseram:
É uma terra fantástica. Vejam as frutas que
trouxemos. Nunca vimos uvas e romãs assim. E o mel
— ê o mais doce que já experimentamos. (Ver Números
13.23.) Mas o povo dali é gigantesco, e tem uma força
incrível. E as cidades não são cidades comuns, são
verdadeiras fortalezas. E quanto aos descendentes de
Enaque, diante deles nós parecíamos gafanhotos. (Ver
Números 13.31-33.)
Não pode haver uma opinião mais baixa de si mesmo do que a daquele que se vê como um gafanhoto. E os espias começaram a chorar, dominados pelo medo. Somente Josué e Calebe davam um relato dife­rente. Bem, eles concordaram com os outros, quanto aos fatos apresentados. As observações que tinham feito eram as mesmas; mas como tinham uma diferente percepção das coisas, também suas conclusões foram diferentes. Por quê? Porque Calebe era um homem de espírito diferente. (Nm 14.24.) Ele não tinha a teologia do verme; não era rastejante; essa é que é a verdade. Ele e Josué não se viam como gafanhotos. E eles disseram o seguinte:
É certo que o povo é alto, mas nós não o
tememos. O Senhor está conosco.
63


Gosto da gíria hebraica que Calebe e Josué empre­garam nessa hora. Disseram:
— "Eles são como pão para nós." Podemos devorá-los como a pães, e podemos fazê-lo porque essa é a vontade de Deus para nós. É o plano de Deus para nós, e ele tem prazer em realizá-lo em nós, e por nosso intermédio. Ele nos dará a realização desse sonho; ele nos dará essa terra. (Ver Números 14.8-10. )
Mas o grande plano de Deus, o objetivo por cau­sa do qual ele os tirara da escravidão do Egito, te­ve que ser adiado para daí a quarenta anos, os quarenta anos de sofrimento no deserto. O sonho divino não era um castelo no ar, feito por um neuróti­co; era uma realidade — era frutas e mel, terras e cidades — era tudo que Deus desejava dar-lhes, e estava ao alcance da mão deles. O sonho estava ali; Deus estava preparado para realizá-lo, mas o povo não, por causa de uma fraca imagem própria. "Somos como gafanhotos." Esqueceram-se de que eram filhos de Deus. Esqueceram-se de quem eram e do que eram.
E como precisamos dessa mensagem hoje em dia! Estamos envolvendo muitos de nossos temores numa capa de mórbida e falsamente espiritual autodeprecia-ção. Estamos encobrindo nossa autodepreciação com uma capa de religiosidade, chamando-a de consagra­ção e autocrucificação. Já está na hora de termos sonhos mais audaciosos. Está na hora de sairmos para o mundo com nosso testemunho de maneira mais grandiosa. O que está-nos segurando? Medo de sermos criticados, medo de correr riscos, medo das tradições, medo da clientela. Por causa de nossa baixa imagem própria frustramos o plano que Deus tem para nós, como corpo — pois que somos o seu próprio corpo.
O que aconteceu aos nossos sonhos? Onde está a visão espiritual que Deus colocou diante de nós? O que foi que a destruiu? Nossos pecados, transgressões e maus hábitos? Duvido. É bem provável que nossos sonhos tenham sido adiados ou destruídos, porque Satanás está conseguindo levar cada um de nós a pensar que somos gafanhotos ou vermes. E em conse­qüência disso,  nunca chegamos a perceber todo o
64





nosso potencial como filhos de Deus. Estamos domina­dos por temores e dúvidas, sentimentos de inferiorida­de e de impotência.
Até onde teria ido William Carey, o primeiro gran­de missionário protestante à índia, se não tivesse um sonho? E ele o expressou com as seguintes palavras: "Espere grandes coisas para Deus; tente realizar grandes coisas para Deus." Esse é o tipo de sonho divino que pode ser destruído por uma imagem própria negativa. A falta de fé muitas vezes é alimentada pelo fato de subestimarmos o plano que Deus quer realizar através de nós.
3. A imagem própria negativa destrói nosso relaci­onamento com os outros. Pensemos em nosso relacio­namento com Deus. Se ficarmos sempre a considerar-nos sem valor ou inferiores, o raciocínio natural é acharmos que Deus não pode nos amar e cuidar de nós. Esse tipo de pensamento muitas vezes produz questionamentos e ressentimentos, que começam a "azedar" nossa comunhão com ele. Afinal, de certo modo não é culpa dele que estejamos assim? Ele nos criou como somos. Provavelmente, ele poderia ter-nos criado diferentes do que somos. Mas não o fez. Então, na certa, isso quer dizer que ele ama os outros e dá a eles muitas coisas, mas não a nós, pois não nos ama. Eles estão bem, mas nós não.
Depois que começamos a criticar o projeto, não demora muito e estamos criticando o Projetista. É assim que nosso conceito sobre Deus fica envenenado e a percepção do que ele sente a nosso respeito torna-se confusa, acabando por destruir nossa comu­nhão com ele.
A imagem própria baixa também estraga nosso relacionamento com os outros. Satanás usa nosso doloroso sentimento de inferioridade e de incapacida­de para isolar-nos dos outros. A maneira mais comum de tolerar o complexo de inferioridade é nos retrair­mos para dentro de nós mesmos, e ter o menor contato possível com outras pessoas, e apenas de vez em quando dar uma espiadinha para fora, enquanto o resto do mundo segue em frente.
Cristo ordenou que amássemos ao próximo assim


65


como amamos a nós mesmos. Daí podemos inferir que é importante, para a ética cristã e para os relaciona­mentos entre pessoas, que tenhamos uma imagem própria sadia.
Só podemos ajudar a outros quando temos uma opinião correta de nós mesmos. Quando nos deprecia­mos, ficamos por demais envolvidos em nós mesmos, e com nós mesmos, e não temos nada para dar aos outros.
Quais são as pessoas de mais difícil convivência? Aquelas que não gostam de si mesmas. Como não gostam de si mesmas, também não gostam dos outros, e é difícil nos relacionarmos com elas. A imagem própria negativa é, dentre todos os fatores que conhe­ço, o que mais destrói relacionamentos humanos.
Quem tem uma auto-imagem fraca está pedindo aos outros seres humanos que façam por ele uma coisa que ninguém pode fazer — levá-lo a sentir-se capaz e ajustado — quando ele já está convencido exatamente do contrário. Isso coloca um peso muito grande sobre uma esposa, marido, filhos, amigos, vizinhos ou mem­bros da igreja. E essa pessoa torna-se hostil ou duvido­sa, retraída ou dependente de outrem. Deus quer que cada um de nós floresça com seu viço pessoal, que cada um faça a sua parte, para que o jardim dele seja belo e colorido.
4. A imagem própria negativa prejudica enorme-mente nosso serviço cristão. Qual é o maior empecilho no caminho dos membros do corpo de Cristo, que os impede de atuar como parte desse corpo? Qual é a primeira coisa que as pessoas dizem, quando lhes pedimos para fazer qualquer coisa no corpo de Cris­to?
   Lecionar na escola dominical? Tenho vergonha de falar à frente de muita gente.
   Dar testemunho na reunião de senhoras ou de homens? Ah, eu não saberia falar nada.
   Evangelizar de casa em casa? Tenho medo de fazer isso.
   Cantar no coro? Por que você não pede a Mary? Ela tem uma voz bem melhor que a minha.
66


Nós, os pastores, ficamos quase sufocados pela torrente de auto-depreciação que as pessoas derra­mam sobre nós com suas desculpas para não trabalha­rem na obra de Deus. Não estou querendo colocar uma cravelha quadrada num buraco redondo; não. Nem todo mundo pode fazer tudo. Conheço pessoas na igreja que dizem: "Pastor, não sei falar em público; esse não é o meu dom; mas posso fazer outras coisas." Todo mundo é capaz de fazer alguma coisa, e utilizar o seu dom em função de outros, dentro do corpo de Cristo.
Você já notou que Deus não escolhe "superastros" para realizar sua obra? Analise bem isso e verá que é fato — desde Moisés, que não pestanejou em dizer a Deus que era gago, até Marcos, o "filhinho da ma­mãe", que abandonou Paulo e Barnabé. Paulo estava certo quando disse que não são chamados muitos sábios, nobres e bem dotados. Parece que Deus chama pessoas com imperfeições e fraquezas, dá-lhes um trabalho para fazer, e depois lhes concede graça para realizá-lo. O "time" de Deus não é constituído de muitos sábios, nem muitos poderosos, nem nobres, nem "super-homens", nem "mulheres-maravilhas". (1 Co 1.26-31.)
O problema é que nossa baixa avaliação de nós mesmos rouba de Deus grandiosas oportunidades de demonstrar seu poder e capacidade, por meio de nossas fraquezas. Paulo disse o seguinte: "De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas." Por quê? Porque elas dão a Deus a grande oportunidade de demonstrar sua perfeição (2 Co 12.9-10). Não existe nada que frustre mais o serviço cristão, do que termos uma fraca imagem de nós mesmos, pois assim nunca damos a Deus a oportunidade de agir.
Lembra-se daquela historieta sobre um mercado de um povoado da índia? Todo mundo levava suas coisas para vender ali. Certo camponês levou um bando de codornizes, sendo que cada uma tinha um dos pés amarrados por um barbante. A outra ponta de cada um dos barbantes estava presa a um anel metálico pelo centro do qual passava um bastão. E todas as
67


aves estavam caminhando em círculos, em volta do bastão, como mulas girando as rodas de um moinho. Parecia que nenhum dos presentes ali queria comprar as codornizes, até que um piedoso brâmane passou no lugar. Ele cria na concepção hinduísta de que toda forma de vida devia ser respeitada, e seu coração compassivo apiedou-se das aves. O brâmane indagou do preço dos animais e depois disse ao comerciante:
Quero comprá-las todas.
O homem ficou encantado. Mas depois que o brâ­mane lhe pagou pela compra, disse:
  Agora quero que o senhor solte todas elas.
  O que disse, senhor? indagou o outro surpreso.
  O senhor ouviu. Corte os barbantes que pren­dem seus pés e solte-as todas. Liberte todas elas.
  Tudo bem, senhor, se é isso que deseja...
E o camponês pegou a faca e cortou o cordel que prendia os pés das aves, deixando-as soltas. O que aconteceu? As codornizes simplesmente continuaram caminhando em círculos. Afinal o homem teve que espantá-las para que voassem. Mas um pouco mais adiante elas pousaram no chão e recomeçaram a caminhar do mesmo jeito. Estavam soltas, livres, desa­marradas, e no entanto ainda continuavam a cami­nhar em círculos, como se ainda estivessem presas.
Você se enquadra nessa figura? Livre, perdoado, filho de Deus, membro da família dele, mas ainda vendo a si mesmo como um verme rastejante ou como um gafanhoto? Uma imagem própria negativa é a mais mortal arma psicológica de Satanás, e pode manter-nos girando no círculo vicioso do medo e da inutilida­de.
68




"Considerai o incrível amor que o Pai manifestou para conosco consentindo sermos chamados "filhos de Deus" na realidade. Nossa herança, no seu aspecto divino, não se trata duma mera figura de retórica, o que explica por que o mundo jamais nos reconhecerá, tal como não conhece a Cristo. Oh! queridos filhos [perdoai a afeição dum velho/J, já compreendestes? Somos efetivamente filhos de Deus. Não conhecemos o que o futuro nos reserva. Apenas é sabido que, quando a realidade vier a manifestar-se, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como ê."
(1 Jo 3.1,2 — Cartas às Igrejas Novas.)


5
A Cura da Imagem Própria Negativa (1)
Faz muitos anos, um famoso cirurgião plástico, o Dr. Maxwell Maltz, escreveu um livro que se tornou um best-seller: New Faces — New Futures (Rosto novo, futuro novo). Era uma coletania de narrativas de clientes que haviam-se submetido à cirurgia plástica facial, e, em conseqüência, haviam iniciado uma nova existência. A tese do autor é que, quando uma pessoa modifica seu rosto, ocorrem nela notáveis transforma­ções de personalidade.
Entretanto, com o passar dos anos, o Dr. Maltz começou a descobrir um outro fato, não com os suces­sos que obtinha, mas com seus fracassos. Ele percebeu que muitos pacientes, mesmo após a mudança operada pela plástica facial, não demonstravam a mesma transformação. Essas pessoas, apesar de terem feito cirurgias que as haviam deixado não apenas aceitá­veis, mas belas, continuavam a agir e pensar como se ainda fossem o "patinho feio". Tinham um rosto novo mas continuavam com a mesma personalidade de antes. E pior que isso. Quando se olhavam ao espelho, ficavam irritadas com o médico e diziam:
— Estou com a mesma aparência de antes. O senhor não me modificou nada.
71


E diziam isto, apesar de seus amigos e familiares quase não as reconhecerem após a operação. Embora suas fotos de "antes" e "depois" revelassem grandes diferenças, esses pacientes do Dr. Maltz ficavam insistindo em dizer:
  Meu nariz está a mesma coisa.
  As maçãs do meu rosto ainda estão do mesmo jeito.
  Você não me melhorou em nada.
Em 1960, o Dr. Maltz escreveu seu best-selJer Psycho-Cybernethics (Psico-cibernética). Com este livro ainda estava querendo modificar as pessoas, mas não pela correção das maçãs faciais, nem pela remoção de cicatrizes, mas auxiliando-as a mudar a imagem que tinham de si mesmas.
O Dr. Maltz afirma que parece que cada personali­dade possui um rosto. Esse rosto emocional da perso­nalidade parece ser o segredo da transformação. Se ele continuar todo marcado e desfigurado, feio e de baixa qualidade, então a pessoa continuará a agir de acordo com ele, mesmo que sua aparência exterior se modifique. Mas, se o rosto da personalidade puder ser reconstruído, se as velhas cicatrizes emocionais pude­rem ser removidas, a pessoa se transformará.
E todos nós podemos confirmar esta tese, ou pela experiência que temos com outras pessoas, ou pelo nosso conhecimento de nós mesmos. É impressionante a forma como a imagem que temos de nós influencia nossas ações e atitudes, e principalmente nosso rela­cionamento com os outros.
Vejamos o exemplo de Marie. Jim, o marido dela, achava-a belíssima. Ele já me havia dito isto antes mesmo de virem conversar comigo sobre seus proble­mas. Quando a vi, tive de concordar com ele. Jim gostava de gabar de sua esposa diante de todos, e nunca se cansava de dizer carinhosamente a Marie que ela era linda. E gostava de comprar-lhe belas roupas, seus presentes de amor para ela, tornando-a ainda mais linda. Bem no fundo do coração, toda esposa deseja isso do marido. Mas no caso de Marie, a admiração do marido estava causando problemas,
72


pois a imagem que ela havia feito de si mesma era o oposto do que Jim via.
Você só está dizendo isso para me agradar, dizia
ela. Na verdade, você não acha isso.
Jim sentia-se magoado e frustrado. E quanto mais ele procurava meios de convencer a esposa de que realmente a achava bonita, maior se tornava a barrei­ra entre eles.
  Sei muito bem como sou, dizia ela. Estou-me
vendo no espelho. Não precisa inventar essas coisas.
Por que você não me ama como sou mesmo?
E era sempre assim. A imagem que Marie tinha de si mesma impedia-a de agradecer a Deus pelo dom da beleza que possuía. Impedia-a de ver a realidade. E pior que tudo, impedia-a de cultivar um belíssimo relacionamento de amor com seu dedicado marido.
O que é imagem própria? Nossa imagem própria se baseia em todo um sistema de idéias e sentimentos acerca de nós mesmos, que vamos recolhendo e reu­nindo. Muitas vezes, tenho empregado as expressões conceitos emocionais ou emoções conceituais, para designar essa combinação de imagens e sentimentos, já que a imagem própria compreende tanto imagens mentais, quanto sensações emocionais. Temos todo um sistema de conceitos emocionais e emoções conceituais com respeito a nós mesmos. Ele constitui o próprio âmago de nossa personalidade. E é exatamente aí que melhor se aplica a declaração bíblica sobre o coração e a mente: "Porque, como imagina em sua alma, assim ele é." (Pv 23.7.) O modo como olhamos para nós mesmos e aquilo que sentimos a nosso respeito, bem no fundo do coração, irá determinar o que somos e o modo como seremos. O que vemos e sentimos irá definir o curso de nosso relacionamento com as outras pessoas e com Deus.
Esse fato é de importância vital para os adolescen­tes, pois nada é mais necessário ao seu desenvolvimen­to cristão e ao seu crescimento no Senhor, do que uma boa e sadia imagem própria.
O Dr. Morris Wagner, um conselheiro cristão profis­sional, explica, em seu excelente livro The Sensation of
73


Being Somebody (A sensação de ser alguém), os três componentes básicos de uma imagem própria equili­brada, sadia.
O primeiro é o sentimento de aceitação, a sensação de que se é amado. Isto é simplesmente o fato de nos sentirmos queridos, aceitos, amados, apreciados, cui­dados. Eu, pessoalmente, acredito que esta sensação se inicia antes mesmo de nascermos. Tenho conversa­do com inúmeras pessoas que me procuram para aconselhamento e que revelam traumas tão profundos, que estou convencido de que seu sentimento de rejei­ção tem origem na atitude dos pais para com eles, antes de nascerem. Se uma criança é indesejada, dificilmente terá sentimento de aceitação.
O segundo componente é o senso do valor próprio. É uma consciência e crença interior que afirma: "Eu tenho valor. Valho muito. Tenho alguma coisa para oferecer aos outros."
E o terceiro é o senso de competência. Trata-se do conceito emocional que afirma: "Sou capaz de fazer esse trabalho. Consigo suportar essa situação. Sinto-me capaz diante da vida." Reunindo todas essas coisas, diz o Dr. Wagner, temos a tríade de sensações formativas da imagem própria: aceitação, valor e competência.
Fatores que Formam a Imagem Própria
Existem quatro fatores que influem na formação de nossa imagem própria, quatro elementos que atuam sobre o indivíduo para a criação dessa imagem: o mundo exterior, o mundo interior, Satanás e todas as potestades do mal, e Deus e sua Palavra. Neste capítulo examinaremos o mundo exterior, já que ele é o primeiro fator, o solo básico do qual brota nossa imagem própria.
Nosso mundo exterior é constituído de todos os elementos que entram em nossa formação — nossa herança e nascimento, nossa infância, meninice e adolescência. O mundo exterior compreende toda a nossa experiência de vida até o presente momento. Nossa experiência com o mundo nos diz como fomos
74


tratados, como fomos instruídos e como nos relaciona­mos com as pessoas nos primeiros anos de vida. Basicamente, ela reflete as atitudes de nossos pais e familiares, e as mensagens que eles nos comunicaram a respeito de nós mesmos, com sua expressão facial, seu tom de voz, seus gestos, palavras e ações.
O grande psicólogo George Herbert Mead emprega uma expressão bastante interessante para descrever o relacionamento das pessoas com o mundo exterior. Ele
0 chama de "o eu do espelho". Um bebezinho tem
pouca noção de seu eu. Mas, à medida que vai cres­
cendo, vai aos poucos aprendendo a fazer distinção
entre diversos aspectos da vida, e a obter uma imagem
de si mesmo. De onde ele retira essas impressões? Do
reflexo das reações das pessoas que mais influência
exercem sobre sua vida.
O apóstolo Paulo havia dito a mesma coisa séculos antes do Dr. Mead. Bem no centro do capítulo do amor,
1 Coríntios 13, ele diz isso mesmo quando se refere ao
crescimento humano.
Meu conhecimento é imperfeito, inclusive o conhecimento que tenho de mim mesmo. Quando eu era criança, falava, pensava e raciocinava como criança. Mas, quando cresci, pus de lado as coisas infantis, e no entanto, ainda assim, vejo como se estivesse olhando num espelho, que me oferece apenas reflexos da realidade. Mas um dia terei perfeito conhecimento. Então verei Deus e a realidade face a face. Hoje conheço em parte, mas naquele dia compreenderei a mim mesmo plenamente, assim como tenho sido plenamente compreendido. Essa minha visão parcial das coi­sas decorre do fato de eu ver a mim mesmo num espelho, de maneira obscura, indistinta. (Pará­frase feita pelo autor, de 1 Coríntios 13.9-12.)
Uma das características da criança é que ela sabe e entende as coisas parcialmente. E alcançar um entendimento pleno das coisas, numa compreensão da realidade face a face é um aspecto do desenvolvimento
75


e atingimento de um amor maduro. As imagens e sentimentos que temos a respeito de nós mesmos procedem, em grande parte, das imagens e sentimen­tos que vemos refletidos em nossos familiares — o que vemos no semblante deles, o que ouvimos no tom de sua voz e vemos em suas ações. Esses reflexos nos dizem não somente o que somos, mas também o que vamos nos tornar. E à medida que esses reflexos vão, pouco a pouco, penetrando em nós, vamos tomando a configuração da pessoa que vemos naquele espelho familiar.
Você já entrou numa sala de espelhos, dum parque de diversões? Quando nos miramos num daqueles espelhos, vemo-nos altos e esqueléticos, com mãos compridas. Em outro, nos vemos como um enorme balão. Outro espelho já faz uma mistura dos dois primeiros: da cintura para cima parecemos uma gira­fa, enquanto que da cintura pra baixo parecemos um hipopótamo.
Ver nossa imagem refletida nesses espelhos pode ser uma experiência muito engraçada, principalmente para quem está do nosso lado. Essa pessoa pode ter morrido de rir, ao ver-nos com aquela aparência tão estranha. Mas o que acontecia ali? Os espelhos são construídos de forma a dar-nos uma imagem de nós mesmos  de acordo com a curvatura do vidro.
Pois bem; vamos levar estes espelhos para dentro de nossa casa. E se, de algum modo, nossa mãe, pai, irmãos, avós — que são as pessoas mais importantes das primeiras fases de nossa vida — pegarem todos os espelhos da casa e lhes derem uma certa cur­vatura de modo que vemos refletida ali uma ima­gem distorcida de nós mesmos? O que nos acontece­ria? não iria demorar muito e estaríamos criando uma imagem igual à que estávamos vendo nos espelhos da família. Depois de algum tempo, começaríamos a falar e agir, e a nos relacionarmos com os outros de acordo com a imagem que estávamos vendo continuamente naqueles espelhos.
Em nossos retiros de Ashram, temos uma reunião denominada "A Hora de Abrir o Coração", e nesses
76


momentos as pessoas falam de seus problemas mais profundos. Nessa reunião apresentamos a seguinte pergunta: "O que há em sua vida que o impede de servir a Jesus Cristo da melhor maneira possível?" Certa noite, um pastor se levantou para dar seu testemunho. Era um homem de quarenta e poucos anos, simpático, bem sucedido no ministério, e no vigor da vida. Pastoreava uma igreja grande e florescente, mas confessava com profunda comoção que abrigava temores constantes quanto à sua capacidade, e que estava sempre lutando contra um sentimento de infe­rioridade. Era por demais susceptível em relação ao que as pessoas diziam dele, e estava sempre tendendo a imobilizar-se à menor crítica. Esses temores o impe­diam de lançar-se a outros trabalhos, mesmo sentindo que Deus o estava orientando naquele sentido.
Após o encerramento da reunião, um dos presen­tes, que era um dos líderes de sua igreja, disse-me:
— Sabe de uma coisa, aquele pastor é a última pessoa que eu esperava que dissesse uma coisa des­tas. Pois ele é tão simpático, tem tanto sucesso, possui uma família maravilhosa e uma igreja ótima. Eu nunca pensaria que um homem como ele tivesse tantos tor-mentos no coração.
Mas eu conhecera a família daquele pastor. Sabia como o pai dele o havia negligenciado em criança — e esse "espelho" fala muito alto. Quando um pai não dedica muito tempo ao filho, está transmitindo para a criança uma grave mensagem: "Você não merece que eu perca meu tempo com você. Tenho coisas mais im­portantes a fazer." Eu sabia como o pai estava cons­tantemente a depreciá-lo e como a mãe tentava ajudá-lo com modos excessivamente melosos e emocionais. Ela procurava incentivá-lo dizendo-lhe o que se espera­va dele, ou comparando-o com a irmã mais velha, uma pessoa muito inteligente e atraente. Eu tinha conheci­mento dos destrutivos espelhos defeituosos, os espe­lhos do desinteresse e da falta de afeição, da crítica e da comparação, nos quais sua imagem própria sofrerá terríveis distorções. Essas mágoas e traumas estavam prejudicando sua personalidade trinta anos depois,


paralisando seu potencial de trabalho, e sabotando seu serviço para Deus.
Pode parecer aqui que estou procurando alguém para jogar a culpa de um problema, mas não é isso que estou fazendo. Neste nosso mundo decaído e imperfei­to, todos os pais são imperfeitos no exercício da sua missão de pais. A maioria dos pais que conheço faz o melhor que pode. Infelizmente, os exemplos que tive­ram não foram tão bons assim, desde Adão e Eva. Caim e Abel devem ter presenciado muitos conflitos e tensões. O lar deles deve ter sido muito infeliz, para um irmão terminar matando o outro.
Embora todos tenhamos nossa parcela de culpa, não pretendo aqui aplicar a culpa a ninguém. O que estou tentando fazer é levar-nos a ter uma compreen­são melhor dessas coisas, uma visão mais abrangente, para que reconheçamos os pontos em que precisamos de uma restauração interior, em que precisamos res­tabelecer uma auto-avaliação correta.
Você está precisando de uma nova coleção de espelhos? Muitos adolescentes precisam, bem como casais jovens que estão criando seus filhos. Alguém já disse: "Nossa infância é a época da vida em que Deus deseja construir em nós os cômodos do templo em que ele irá viver quando formos adultos." Que belo pensa­mento! Os pais têm o grande privilégio e a respon­sabilidade de fornecer o projeto básico deste templo — a imagem própria da criança.
Uma criança que se convence de que vale muito pouco, dará pouco valor a tudo que diz ou faz. Se ela for "programada" para ser incompetente, vai tornar-se incompetente. Certo homem me disse que a coisa que ele mais recorda é uma frase que o pai sempre lhe dizia:
— Se existe uma maneira errada de fazer as coisas, você sempre descobre qual é.
Se uma pessoa recebeu este tipo de programação, com uma auto-avaliação tão baixa, é muito difícil, e em certos casos até impossível, que ela se sinta amada por Deus, aceita por ele, e de valor para ele, seu Reino e seu serviço. Muitas de nossas lutas, aparen-
78


temente espirituais, não se originam realmente no plano espiritual. Embora tenham toda a aparência de um castigo de Deus sobre uma consciência culpada, na verdade elas procedem de horríveis e danosos concei­tos emocionais que criam em nós uma imagem própria negativa.
Shirley
Era esse o caso de Shirley, esposa de um seminaris­ta. Tinha mais ou menos vinte e cinco anos, quando nos procurou para aconselhamento. Ela se pôs a despejar sua mágoa e sofrimento como se fosse uma torrente. Ela tinha problemas demais no casamento e muitas tensões no trabalho. Ela já mudara de emprego diversas vezes, devido às dificuldades de relaciona­mento com as pessoas. A despeito de suas mais sinceras tentativas de devoção, testemunho, serviço cristão e oração, ela não estava nem um pouco satis­feita com seu relacionamento com Deus, e sentia-se certa de que Deus não estava nada contente com ela.
Fora criada numa casa na zona rural com seus pais, que lhe haviam proporcionado muitas coisas boas — segurança, disciplina, muito trabalho, uma profunda consagração cristã e altos padrões morais. Os pais eram pessoas muito justas e nobres, e com eles ela aprendeu a ter um amor sincero para com Deus, sua igreja e sua Palavra, embora muito entremeado com o senso de dever.
Mas, aos poucos, eu e Shirley começamos a sentir que, embora os pais dela tivessem feito o melhor que podiam, tinham agido da maneira errada, fazendo elogios sob a forma de comparações ou estabelecendo condições:
   Shirley, você é tão boazinha quando...
   Espero que você nunca seja igual aquela Sally ali embaixo.
   Essa foi muto boa, Shirley, mas...
   Gostamos   muito de   você  quando  você...   se você... mas...
E eram tantas as condições! E Shirley passou a vida
79


toda tentando superar, lutando, trabalhando, esfor­çando-se e procurando atingir certos padrões. E ela se saiu até muito bem, a não ser em um aspecto da vida. Todos sabemos como algumas mocinhas, no período da adolescência, passam pelo estágio do "patinho feio". Shirley foi uma dessas, e seu pai tentou ajudá-la a aceitar a si mesma. Ele realmente a amava, mas várias e várias vezes lhe disse:
— Você sabe, é impossível transformar uma batata em um pêssego.
Embora pensasse que estivesse ajudando-a ao di-ser isso, na verdade estava ferindo e cortando ainda mais sua imagem própria. Ela cresceu tendo sempre para si mesma a imagem de uma batata, consideran­do-se uma pessoa deformada e feiosa, como algo que cresce debaixo da terra.
Então eu e ela começamos a ver que aquela imagem de batata havia afetado todos os aspectos de sua vida, tornando-a sensível e dolorosa como uma ferida aber­ta. E sempre interpretava erradamente tudo que lhe diziam os amigos, vizinhos, colegas de trabalho, pa­trão e até seu amoroso marido. E naturalmente o que lhe dizia o Senhor. Como podia acreditar que Deus a amava, se ele a criara como uma batata? Não tinha sido muito legal da parte dele fazer isso, tinha? Também não aceitava o amor de seu marido. Todos nós gostamos de comer batatas, mas a aparência delas deixa muito a desejar.
As mágoas que Shirley abrigava eram bastante profundas. Tivemos que remexer em todas essas lem­branças dolorosas, juntamente com o Senhor, e entre­gá-las a ele, para que fossem curadas. E durante o longo período de aconselhamento que tivemos, rara­mente empreguei o nome dela. Chamava-a "Pêssego de Deus" ou então "Meu Pêssego".
Empenhei-me ao máximo para "reprogramar" a sua imagem própria, e ela correspondeu maravilhosa­mente à graça de Deus. Quando compreendeu que era filha de Deus, pôde permitir que o amor e a graça divina se derramassem em sua alma e lavassem todos aqueles sentimentos e imagens de batata. Foi uma das
80


mais notáveis transformações que pude presenciar. Até sua aparência mudou. Shirley passou a cuidar-se melhor e começou a ficar mais atraente. E o que foi melhor: tornou-se uma pessoa muito simpática, rela-cionando-se bem melhor com os outros. E ela veio a ser, em Cristo, um ser humano com um adequado senso de valor próprio.
Anos depois, fui pregar numa igreja de outro estado, e após o culto Shirley veio falar comigo, trazendo no colo um belíssimo bebê — uma criança lindíssima. Olhei para aquela garotinha e comentei:
  Vê, Shirley, uma batata não poderia ter produzi­
do um ente desses!
Ela me fitou com um sorriso maroto, e respondeu rindo:
  Linda como um pêssego, não?
81


"Entre os homens é raro alguém dar a vida peio seu semelhante, mesmo que se trate de quem mereça, embora às vezes haja quem tenha coragem de o fazer. Ainda nos resta a seguinte prova do amor de Deus: é que Cristo morreu por nós, enquanto éramos ainda pecadores. E se assim foi, enquanto pecávamos, agora que fomos justificados pelo derramamento de Seu Sangue, qual a razão para temermos a ira de Deus? Se, morrendo por nós, Cristo nos reconciliou com Deus, quando éramos Seus inimigos, certamente que após esta reconciliação podemos ficar plenamente seguros da nossa salvação, uma vez que Cristo vive em nós. Mais ainda: podemos orgulhar-nos do amor de Deus através da reconciliação que Cristo veio trazer-nos."
(Rm 5.7-11 — Cartas às igrejas Novas.J
"Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento. Este é o grande e o primeiro man­damento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamen­tos dependem toda a lei e os profetas. "
ÍMt 22.37-40.]


6
A Cura da Imagem Própria Negativa (2)
A imagem própria de cada indivíduo é um conjunto de sensações e conceitos que ele formou a respeito de si mesmo. Nossa imagem própria nos vem de quatro fontes.
     A primeira é o mundo exterior, que examinamos no capítulo 5. Nesse mundo exterior vemos imagens e impressões acerca de nós mesmos refletidas no espe­lho dos membros de nossa família. Estabelecemos nossa noção de identidade própria a partir dos primei­ros relacionamentos — pela forma como somos trata­dos, amados e cuidados, e pela comunicação que recebemos em nosso relacionamento com os outros, quando estamos em fase de formação e crescimento.
     A segunda fonte de impressões é o mundo inte­rior, isto é, os elementos físico, emocional e espiritual que trazemos conosco ao nascer. Dele fazem parte nossos sentidos, sistema nervoso, nossa capacidade de aprender, de registrar fatos, de reagir diante da realidade. E para alguns, esse mundo interior compreenderá também defeitos físicos, deformações e deficiên­cias.
Não existem duas crianças iguais. Todas são mara­vilhosamente distintas entre si, assim como os flocos
83


de neve. E que erro cometem os pais consultando ape­nas livros para criar os filhos, como se estes fossem to­dos iguais. Os que são pais sabem do que estou falan­do. A gente tem um filho que é teimoso como uma mula, e é obrigado a usar uma vara até para obter a atenção dele, quanto mais para discipliná-lo. E por outro lado tem também um filho que é sensível como uma planti-nha tenra, tanto que não é preciso nem erguer a mão ou a voz, para se obter dele o que se deseja. Como é ridículo achar que basta um conjunto de regras so­bre a criação de filhos! Essas diferenças existem devi­do à nossa identidade individual e à nossa constitui­ção psicofísica.
Entretanto, existe também o fator espiritual, e é nisso que nos distinguimos de toda a psicologia secu­lar, humanista e paga, que considera a natureza humana como sendo essencialmente boa, ou então moralmente neutra. Nós, os cristãos, não pensamos assim. Deus nos revelou em sua Palavra que não entramos nesta vida moralmente neutros. Pelo contrá­rio, somos vítimas de uma tendência básica para o mal, de uma inclinação para o erro. Chamamos a isso "pecado original".
A verdade é que a única coisa em nós que não é muito original é o pecado. As leis e princípios que regem todas as inter-relações humanas e o desenvolvi­mento do homem garantiram a transmissão do pecado, quando nossos primeiros pais, de certo modo, se desentenderam com Deus, e passaram a viver em egocentrismo e orgulho. Com o primeiro pecado de Adão e Eva, foi ativada uma reação em cadeia ge­rando uma criação de filhos imperfeita, conduzida por meio de falhas, ignorância e atos mal orientados e, o que é pior, por amor condicionado a exigências.
Essa herança paterna faz de cada ser humano uma vítima da pecaminosidade total. O fato é que não entramos neste mundo perfeitamente neutros em nossa moral, mas pendendo imperfeitamente na direção do erro. Somos desequilibrados em nossas motivações, desejos e impulsos. Achamo-nos fora das proporções certas, com uma forte inclinação para o erro. E devido
84


a esse defeito de nossa natureza, nossas reações acham-se fora de foco.
Faz alguns anos, li uma frase que tem sido muito valiosa em meu trabalho de aconselhamento: "As crianças são os melhores gravadores do mundo, mas os piores intérpretes." O fato é que elas captam muitas das imperfeições que as cercam e, por causa do egocentrismo inerente a toda a raça humana, interpre­tam erradamente grande parte daquilo que captam, e isso afeta demais sua imagem própria. Parece que, mesmo que os pais criem muito bem os filhos, a maioria das pessoas chega à idade adulta com o seguinte conceito: "Tudo bem com você, mas não comigo." Isso parece fazer parte da constituição humana.
A Bíblia deixa bem claro que não somos meras vítimas. Todos somos pecadores e responsáveis pela nossa identidade e pelo que acabamos nos tornando. Nunca vi ninguém ficar realmente curado de traumas e problemas, enquanto não tivesse perdoado a todos aqueles que de alguma maneira o prejudicaram, e também recebesse o perdão de Deus para suas pró­prias reações erradas.
     Satanás é a terceira fonte de onde recebemos impressões, e já falamos dele como um dos influencia-dores de uma auto-imagem negativa. Ele utiliza nossos sentimentos de autodesprezo como uma terrível arma contra nós, nos três papéis que desempenha. Ele é mentiroso Qo 8.44), acusador (Ap 12.10), e é aquele que cega nosso entendimento (2 Co 4.4). Para atuar nessas três funções, ele emprega as armas da inferio­ridade, incapacidade e autodepreciação para derro­tar o cristão e impedir que ele redescubra todo seu imenso potencial como filho de Deus.
     A quarta fonte de onde recebemos impressões para a formação de nossa imagem própria é Deus. Agora deixamos a questão da imagem própria negativa e passamos a considerar o poder de Deus na formação de uma imagem própria em bases cristãs. Deixamos a doença e passamos à cura, pois existem algumas medidas práticas que podemos tomar, a fim de curar essa deformidade que é a imagem própria negativa.
85


Corrigir Nossas Idéias Teológicas Erradas
Deixemos que Deus e sua Palavra consertem nossas falsas idéias. Muitos de nós absorveram uma certa idéia que, aos olhos de Deus, em verdade, é um pecado, mas o fizeram envolvendo-a em roupagens teológicas. Pode ser que o leitor também tenha trans­formado esse erro em virtude. Ora, é impossível que uma pessoa viva da maneira certa, se suas idéias são erradas. Não se pode praticar a verdade, quando se acredita num erro.
Essa idéia falsa é a crença de que Deus se agrada de uma atitude de autodepreciação, que ela é parte da humildade cristã e necessária à nossa santificação e desenvolvimento espiritual.
A verdade, porém, é que a autodepreciação não é a verdadeira humildade cristã, e acha-se em oposição a alguns dos ensinos básicos da fé cristã. O maior mandamento é que amemos a Deus com todo o nosso ser. O segundo é que amemos ao nosso próximo como a nós mesmos — sendo, portanto, uma extensão do primeiro. Não temos aqui dois, mas, sim, três manda­mentos: amar a Deus, amar a nós mesmos e amar aos outros. Coloco o amar a si mesmo em segundo lugar, porque Jesus deixou bem claro que um amor por si pró­prio, na medida certa, constitui a base para se amar os outros. Essa expressão amar a si mesmo, para algu­mas pessoas, tem uma conotação errada. Quer o cha­memos de auto-estima ou valor próprio está claro que isso constitui o alicerce sobre o qual vamos construir nosso amor cristão pelos outros. E essa idéia é exata­mente o contrário do que muitos cristãos crêem.
Alguns anos atrás, preguei essa mensagem sobre os dois grandes mandamentos de Jesus. Após o culto um homem se aproximou de mim e disse:
  Apesar de já ser velho, nunca tinha ouvido a Palavra de Jesus ser apresentada corretamente.
  O que quer dizer? indaguei.
  Bom, replicou, quando o senhor estava pregan­do, compreendi de repente que sempre disse com meus lábios o seguinte: "Amarás a teu próximo como a ti
86


mesmo", mas, bem lá no fundo do meu coração, o que eu estava ouvindo era: "Amarás ao teu próximo, mas odiarás a ti mesmo." Infelizmente, acho que tenho obedecido a esse mandamento com a exata interpreta­ção que dei a ele.
Em outra ocasião, após uma reunião de avivamen-to, na qual preguei sobre um adequado amor por si próprio, uma mulher veio até onde eu estava e disse que passara a vida toda na igreja, mas que eu era o primeiro evangelista que ela ouvira dizer que tínhamos de amar a nós mesmos.
— Esse tempo todo, tenho pensado que Deus quer que eu me despreze, para que permaneça humilde.
Você está precisando acertar seus conceitos teoló­gicos? Se você amar a Deus, a si mesmo e aos outros estará cumprindo toda a lei de Deus (Mt 5.43-48]. Quando Jesus proclamou a lei, ele não a estava endos­sando ou glorificando-a, como faziam alguns rabinos de seus dias. Antes, ele estava usando de toda a sua autoridade para reafirmar o eterno princípio do triân­gulo — um amor correto para com Deus, por nós mesmos e por outras pessoas. Essa lei básica de Deus está inscrita na natureza do próprio universo. Ela opera em cada célula de nosso corpo. A pessoa que possui uma imagem própria adequada é mais saudá­vel, em todos os sentidos, do que aquelas que têm uma imagem própria negativa. Foi assim que Deus nos fez, e se formos contrários ao nosso ser, não apenas estaremos seguindo um conceito teológico errado, co­mo também estaremos arriscando-nos a ser destruí­dos.
Embora existam muitos textos das Escrituras que indicam a importância de uma boa imagem própria, o apóstolo Paulo afirmou claramente que ela é a base de um dos relacionamentos mais íntimos da vida — o de marido e mulher, no casamento. "Assim também os maridos devem amar as suas mulheres como a seus próprios corpos. Quem ama a sua esposa, a si mesmo se ama. Porque ninguém jamais odiou a sua própria carne, antes a alimenta e dela cuida, como também Cristo o faz com a igreja." (Ef 5.28,29.)
87


A versão Philips faz uma paráfrase dessa recomen­dação dizendo: "O marido deve cuidar da esposa com o mesmo carinho com que trata o seu corpo, porque o amor que lhe dedica é uma extensão do amor por si próprio." E no verso seguinte ele coloca o exemplo divino: "Ora, é o que Cristo sente pelo Seu corpo — a Igreja." E em seguida Paulo repete a mesma coisa: "O marido ame a esposa, como se ama a si próprio, e que a esposa reverencie o marido."
A experiência confirma essa verdade psicológica de Paulo. Algumas pessoas amam seus cônjuges exata­mente como amam a si mesmas, e por isso estão com problemas sérios no casamento. Pois a autodeprecia-ção se manifesta no relacionamento conjugai. Para uma pessoa ser um bom marido ou uma boa esposa é necessário que tenha uma visão correta de seu valor próprio e uma boa auto-apreciação.
Essa auto-apreciação também é necessária para se ser um bom vizinho. É muito apropriada a recomenda­ção de Paulo de que não devemos pensar a nosso respeito mais do que convém, mas que pense com moderação (Rm 12.3). Pensando com moderação não iremos nem subestimar-nos nem superestimar-nos. É Satanás quem nos confunde e nos cega nessas ques­tões, pois nos faz acusações:
— Olhe aí, você já está muito orgulhoso de si...
Mas a verdade é justamente o contrário. A pessoa que tem uma imagem própria negativa está sempre tentando se mostrar. Ela tem que provar que está certa, em todas as situações, tem que comprovar seu valor. E geralmente fica toda envolvida em si mesma, sempre voltada para si.
Quem tem uma imagem própria muito baixa torna-se muito egocêntrico. Isso não quer dizer necessaria­mente que seja egoísta. Ele pode até ser um capacho, e isso também é uma das resultantes do problema. Mas é egocêntrico no sentido em que está sempre voltado para si mesmo, preocupado consigo mesmo. Pode ser até desses viciados em elogios, que estão sempre buscando a aprovação dos outros, para se sentir mais seguro.
88


Ninguém pode amar aos outros incondicionalmen­te, quando precisa ficar o tempo todo demonstrando seu valor próprio. Pode parecer que os ama, quando na verdade está apenas utilizando-os para que provem a si mesmo que ele é ótima pessoa.
A autonegação não tem nada a ver com a humilda­de cristã, nem com a santidade. A crucificação do eu e a entrega pessoal a Deus não implicam em deprecia­ção própria.
Nosso Senso de Valor Próprio Deve Vir de Deus
Temos que formar nosso senso de valor próprio a partir do que Deus diz, e não dos falsos reflexos que nos provêm do passado. A cura dessa enfermidade, que é a imagem própria negativa, gira em torno de apenas uma decisão que temos de fazer: vamos dar ouvidos a Satanás e a todas as mentiras que ele nos diz, às distorções, às apreciações, e às mágoas do passado que nos mantêm aprisionados por certos sentimentos e conceitos acerca de nós mesmos, que não são cristãos nem saudáveis? ou vamos buscar nosso senso de valor próprio em Deus e em sua Palavra?
Eis algumas perguntas para dirigirmos a nós mes­mos.
     Que direito você tem de menosprezar ou depre­ciar uma pessoa a quem Deus ama tanto? Não diga para si: "Bom, sei que Deus me ama, mas não suporto a mim mesmo." Isso é uma fé travestida, um insulto a Deus e seu amor. É uma manifestação de ressentimen­to para com o Criador, que se acha sutilmente camu­flado. Quando desprezamos um ser que é criação de Deus, estamos, na verdade, dizendo que não gostamos do "projeto", e não apreciamos muito o "Projetista". Estamos chamando de impuro aquilo que Deus purifi-, cou. Não estamos vendo realmente o quanto Deus nos ama e o quanto significamos para ele.
     Que direito tem você de desprezar e depreciar uma pessoa a quem Deus honrou tanto? "Considerai o incrível amor que o Pai  manifestou para  conosco
89


consentindo sermos chamados "filhos de Deus" (1 Jo 3.3 — Cartas às Igrejas Novas). E isso não é apenas um modo de tratamento. É o que somos realmente. "Oh! queridos filhos... já compreendestes? Somos efetiva­mente filhos de Deus" (v. 2).
Então acha que quando você se considera desprezí­vel e sem valor, sendo um filho de Deus, ele se agrada dessa falsa humildade?
     Que direito você tem de depreciar ou menospre­zar uma pessoa a quem Deus dá tanto valor? Qual o valor que você tem para Deus? "Entre os homens é raro alguém dar a vida pelo seu semelhante, mesmo que se trate de quem mereça... Ainda nos resta a seguinte prova do amor de Deus: é que Cristo morreu por nós, enquanto éramos ainda pecadores... Mas ainda podemos orgulhar-nos do amor de Deus através da reconciliação que Cristo veio trazer-nos." (Rm 5.7,8,11 — Cartas às Igrejas Novas.) Deus deixou bem claro o valor que temos para ele. Ele nos atribui um valor tão elevado, que entregou a vida de seu Filho para nos salvar.
     Que direito tem você de menosprezar e depreciar uma pessoa de quem Deus cuida com tanto carinho? "Quanto mais vosso Pai que está nos céus dará boas cousas aos que lhe pedirem?" (Mt 7.11.) "E o meu Deus... há de suprir em Cristo Jesus cada uma de vossas necessidades." (Fp 4.19.) Depois de lermos estas passagens, não podemos mais pensar que Deus quer que nos sintamos uns incapazes, e fiquemos a desprezar-nos.
     Que direito você tem de desprezar e depreciar uma pessoa que Deus criou com planejamento tão cuidadoso?
"Louvai a Deus que nos concedeu por Jesus Cristo imensos benefícios espirituais! Vede bem o que fez por nós: escolheu-nos antes da criação do mundo para sermos, em Cristo, Seus filhos santos e irrepreensíveis, levando uma vida sempre den­tro do Seu cuidado. Num plano de amor determi­nou que fôssemos filhos adotivos por Jesus Cristo." (Ef 1.3-5 — Cartas às Igrejas Novas.)
90


  Que direito tem você de depreciar ou menospre­
zar uma pessoa em quem Deus se compraz? O apóstolo
Paulo disse que fomos aceitos por ele "no Amado" (Ef
1.6). Lembra-se das palavras que Deus disse por
ocasião do batismo de Jesus? "Este é o meu Filho
amado, em quem me comprazo." (Mt 3.17.) Paulo nos
oferece aqui uma idéia bastante audaciosa: estamos
"em Cristo". Ele empregou essa expressão noventa
vezes. Se estamos em Cristo, logo estamos no Amado.
Deus olha para nós, que estamos em Cristo, e nos diz:
"Você é meu filho amado, minha filha amada, em quem
me comprazo."
De onde você quer tirar impressões para formar sua imagem própria? Das distorções de sua infância? Das mágoas do passado e das falsas idéias que foram introjetadas em você? Ou será que preferirá dizer:
"Não; não darei mais ouvidos a essas mentiras do passado. Não escutarei o que Satanás diz, já que ele é o acusador, enviando-me mensagens confusas; ele é aquele que nos cega, que distorce tudo. Vou escutar a opinião que Deus tem de mim, vou deixar que ele me programe, até que o bom conceito que ele tem de mim passe a ser o meu, atingindo até o mais íntimo dos meus sentimentos."
Vamos Cooperar com o Espirito Santo
Temos que trabalhar lado a lado com Deus neste processo de reprogramação e renovação. Trata-se de um processo contínuo, e não de uma experiência que se pode ter num momento. Não sei de nenhuma expe­riência espiritual que possa transformar nossa ima­gem própria da noite para o dia. Devemos ser transfor­mados "pela renovação da vossa mente" (Rm 12.2). Os verbos que aparecem neste verso denotam ação contí­nua, e a palavra mente aqui designa nosso modo de pensar, a maneira como encaramos a vida diariamen­te.
Como podemos cooperar com o Espírito Santo nesta tarefa?
  Peça a Deus que lhe dê um toque cada vez que se
depreciar a si mesmo. E quando começar a agir assim,
91


terá uma grande surpresa, pois poderá vir a perceber que toda a sua maneira de ser e agir é formada, direta ou indiretamente, de autodepreciações. Vejamos al­guns exemplos. Como você reage, quando alguém o elo­gia? Você diz: "Obrigado"? "Que bom que você gos­tou"? "Muito agradecido"? Ou se põe a falar deprecia­tivamente a respeito de si mesmo? Se você é dos que estão sempre se diminuindo, nas primeiras vezes, terá muita dificuldade em reprimir-se, pois sua tendência é dizer sempre aquelas coisas. Mas não o diga.
Contudo, em minha opinião, a espiritualização da coisa é pior, e creio que deve ser nauseante para Deus. Uma pessoa diz:
Ouvi quando cantou hoje e gostei muito.
Aí então você assume uma atitude superespiritual e responde:
Ora, não fui eu realmente, foi Deus que o fez por
mim.
É claro que foi Deus. Você vive por ele. Mas não é preciso repetir isso o tempo todo.
• Permita que Deus o ame, e deixe que ele o ensine a amar-se a si mesmo, e a amar aos outros. Você deseja ser amado. Quer que Deus lhe dê segurança, que ele o aceite, e é o que ele faz. Mas, devido à programação nociva que recebemos de outras fontes, temos dificuldade em aceitar esse amor. Aliás, é tão difícil, que talvez você prefira continuar a ser como era.
Mas eu o desafio neste momento a iniciar esse processo de restauração, para que possa erguer bem alto sua cabeça, como filho ou filha do próprio Deus.
92


"Vinde a mim todos os que estais cansados e so­brecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve."
(Mt 11.28-30.)
"Portanto, resta um repouso para o povo de Deus. Porque aquele que entrou no descanso de Deus, tam­bém ele mesmo descansou de suas obras, como Deus das suas. Esforcemo-nos, pois, por entrar naquele descanso, a fim de que ninguém caia, segundo o mesmo exemplo de desobediência."
(Hb 4.9-11.)


7
Os Sintomas do Perfeicionismo
Existem diversos tipos de depressão, e eles variam muito em grau de profundidade. Vamos focalizar aqui um tipo que é causado por traumas emocionais, e mais especificamente por uma distorção espiritual chamada perfeicionismo.
Sei que no instante em que menciono essa palavra logo se erguem no ar várias bandeiras vermelhas em defesa dela. Será que não acreditamos na perfeição cristã? É claro que sim. Mas há uma vasta diferença entre perfeição cristã e perfeicionismo. Embora, à primeira vista, possam parecer semelhantes, existe uma imensa lacuna a separá-los.
O perfeicionismo é uma versão falsa da perfeição cristã, da santidade, santificação ou da vida cheia do Espírito. O perfeicionismo, em vez de fazer de nós pessoas santas, com uma personalidade sadia — isto é, pessoas completas em Cristo — transforma-nos em fariseus espirituais e em neuróticos emocionais.
Pensa que estou exagerando as coisas? Acha que isso é um novo modismo descoberto por pastores e psicólogos? Pois posso garantir que muito antes de a palavra psicologia tornar-se conhecida e empregada, nos séculos passados  já havia pastores de visão que
95


descobriam esses tipos de membros aflitos, e se preo­cupavam profundamente com eles. Eles reconheceram claramente o problema, embora não soubessem como resolvê-lo.
John Fletcher, um contemporâneo de João Wesley, descrevia assim alguns de seus paroquianos:
"Algumas pessoas atam fardos pesados às suas costas, fardos que eles próprios criam. De­pois, sentindo que não conseguem carregá-los, ficam atormentados por sentimentos de culpa imaginária. Outros quase enlouquecem com in­fundados temores de haverem cometido o pecado imperdoável. Em suma, estamos vendo centenas de pessoas que, tendo motivos para acharem que sua condição espiritual é boa, preferem pensar que não existe mais nenhuma esperança para elas."
E João Wesley, quando pastor itinerante, também registrou o mesmo nos seguintes termos:
"Às vezes, a consciência sensível, que é uma qualidade excelente, pode ser levada a extremos. Temos visto pessoas que têm temores, quando não há razão para isso, que estão continuamente condenando-se, mas sem causa, imaginando que certas coisas são pecaminosas, quando não há nada nas Escrituras que as condene, e supondo ser seu dever fazer outras, que a Bíblia não ordena. Isso pode ser corretamente identificado como consciência escrupulosa, e na verdade é um grande mal. É preciso que essas pessoas cedam o menos possível a essas idéias, e orem para que sejam libertas deste grande mal, e recuperem a sensatez da mente." (De Conscience Alone Not a Safe Guide — A consciência sozinha não é um guia confiável — de Arthur C. Zepp.)
Um pastor do passado chegou a escrever um livro sobre o perfeicionismo intitulado The Spiritual Treat-
96


ment of Sufferers from Nerves and Scruples (O trata­mento espiritual para quem sofre de nervos e de escrúpulos). Eis um título bastante apropriado.
Sintomas
O perfeicionismo é o problema emocional mais aflitivo que ocorre entre os evangélicos. Dentre os recalques que eles apresentam, esse é o que mais aparece em meu gabinete.
O que é perfeicionismo? Como é mais fácil descre­ver do que definir, desejo expor aqui alguns de seus sintomas.
1.   A tirania dos deveres. A principal característi­
ca deste mal é uma sensação constante de que nunca se
está agindo da melhor maneira possível, nunca se está
sendo o melhor possível. Esta sensação afeta todas as
áreas de nossa vida, mas principalmente a vida espiri­
tual. A psicóloga Karen Horney cunhou uma expressão
que o descreve com perfeição: "a tirania dos devos".
Algumas das frases típicas são:
     Devo melhorar.
     Devia ter feito melhor.
     Devo ser capaz de melhorar.
E essa sensação aparece em tudo, desde preparar um almoço, até o ato de dar um testemunho: "Não fiz muito bem."
Os três verbos prediletos do perfeicionista são: poderia ter, deveria ter e teria. E para quem está vivendo neste tipo de condição emocional, o hino oficial é: "Ah, se ao menos..." Parece que esse indiví­duo está sempre se pondo na ponta dos pés, sempre estendendo o braço ao máximo, sempre esticando-se, sempre tentando atingir certo nível, mas nunca o consegue.
2.   Autodepreciaçõo. É óbvio que existe uma gran­
de relação entre o perfeicionismo e a imagem própria
negativa. Quem acha que nunca faz as coisas direito,
tem um constante senso de autodepreciação. Quando
uma pessoa nunca está satisfeita consigo mesma nem
com aquilo que faz, a idéia que vem em seguida é
97


bastante natural: Deus nunca está satisfeito com ela também. Parece que ele está sempre lhe dizendo:
Ah, vamos lá! Você pode conseguir uma marca
melhor!
E o perfeicionista que nunca está realmente satis­feito consigo mesmo, replica:
É lógico!
Por mais que tente, o perfeicionista está sempre em segundo lugar, nunca em primeiro. E como tanto ele como Deus exigem o primeiro lugar, o segundo não serve. Então, lá vai ele de volta para as suas galés espirituais, aumentando seus esforços para agradar a si mesmo e a um Deus cada vez mais exigente, que nunca está satisfeito com nada. Mas sempre fica aquém do objetivo, é sempre incapaz e nunca chega lá, mas também nunca pode parar de tentar.
3.   Ansiedade. Os "devos" e a autodepreciação
trazem como conseqüência uma consciência super-
sensível, abrigada sob a gigantesca sombrinha da
sensação de culpa, ansiedade e condenação. Esse
guarda-chuva paira sobre a cabeça do perfeicionista
como uma imensa nuvem. Vez por outra, ela se dissipa
e o sol volta a brilhar, e isso acontece principalmente
em avivamentos, conferências de consagração pessoal
e retiros, quando ele vai à frente para orar ou "fazer
uma entrega pessoal mais completa".
Infelizmente, o brilho do sol dura apenas o mesmo tempo que durou da última vez que ele fez o mesmo percurso, passou pelo mesmo processo e pediu a mesma bênção. Pouco depois ele cai daquela nebulosa espiritual com um doloroso baque. E aquelas mesmas sensações pavorosas de antes voltam a aninhar-se em seu coração. Volta aquela mesma sensação vaga de desaprovação divina e a mesma condenação total; voltam e ficam a incomodar, a bater na porta dos fundos de sua alma.
4.   Legalismo. Essa consciência super-sensível do
perfeicionista e sua sensação de culpa geralmente são
acompanhadas de um forte legalismo e excessivo es­
crúpulo, que dão demasiada ênfase ao exterior, ao
"pode" e "não pode", a regras e regulamentos. Veja-
98


mos por que este sintoma quase que invariavelmente se segue aos três primeiros.
O perfeicionista, com sua consciência fraca, sua imagem própria negativa, e sua sensação de culpa quase permanente é muito susceptível ao que os outros pensam dele. Como não consegue aceitar a si mesmo, e não tem muita certeza da aprovação de Deus, procura desesperadamente a aprovação dos outros. Assim ele se torna presa fácil das opiniões e estimativas dos outros. Cada sermão que ouve vai direto para ele. E pensa: "Ah, é esse o meu problema. Talvez, se eu conseguir me libertar disso... fazer aquilo... Talvez se eu parar de fazer isso e começar a praticar aquilo, então terei paz, alegria e poder. Talvez então Deus me aceite, e poderei agradá-lo."
E enquanto isso os "pode" e "não pode" vão só aumentando; e a pilha vai crescendo, porque a pessoa deseja sempre agradar a um número cada vez maior de indivíduos. Sua auréola tem que ser colocada de certo modo para satisfazer a uma pessoa e de outro modo para agradar a outra. Então o perfeicionista fica a ajustá-la de um modo e de outro, e antes que ele perceba, sua auréola já se transformou naquilo que Paulo chama de "jugo de escravidão" (Gl 5.1). O jugo era uma peça do equipamento de uma fazenda, muito conhecida naqueles dias, que era colocada sobre um animal para fazê-lo puxar o arado, ou então era posta sobre dois bois para formar uma parelha. Mas o termo tinha outro significado também, e é este que Paulo tem em mente aqui. No velho Testamento, o jugo era símbolo de uma autoridade despótica, que era coloca­da no pescoço dos povos derrotados na guerra, como símbolo de seu cativeiro. Era um objeto humilhante e destrutivo.
As boas-novas da graça de Deus tinham penetrado na vida daqueles gaiatas libertando-os desse tipo de jugo espiritual. E a boa-nova é o fato de que o caminho para Deus não é o da perfeição pessoal. Por mais que tentemos, nunca conseguiremos conquistar, com nos­sos próprios esforços, o favor de Deus. A verdade é que este favor divino, a satisfação que ele pode ter
99


para conosco, é um dom que sua graça nos concede por meio de Jesus Cristo.
Parece que a mensagem da graça, para os gaiatas, depois de algum tempo, começou a "ser boa demais para ser verdade", e aí passaram a dar ouvidos a outras vozes, a "outro evangelho", como o denominou Paulo (Gl 1.6). Talvez tenham começado a prestar atenção aos legalistas de Jerusalém, que afirmavam que, para ser um autêntico seguidor de Cristo, uma pessoa tinha que guardar toda a lei, inclusive a lei cerimonial. Ou talvez tenha passado a escutar os asce­tas de Colossos, que se esmeravam em fazer renún­cias, com a finalidade de agradar a Deus. Além disso, se empenhavam também na guarda dos dias especiais, das luas novas e dos "sábados". Insistiam também em atitudes de humildade e numa baixa imagem própria. Davam demasiada ênfase ao que Paulo denominou ordenanças. "Não manuseies, não proves, não to­ques." Ele diz que essas coisas "têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo e falsa humildade", e que elas "não têm valor algum contra a sensualida­de". (Cl 2.21,23.) Como é certa essa colocação!
E assim a influência dos legalistas de Jerusalém e a dos ascetas de Colossos deram como resultado os diluidores e revertedores da Galácia. Eles se reverte­ram para uma diluída mistura de fé e obras, de lei e graça. E as conseqüências disso foram as mesmas que ainda hoje aparecem, quando tentamos misturar lei e graça. Pessoas imaturas e super-sensíveis tornam-se crentes neuróticos, perfeicionistas, carregados de senso de culpa, tensos, infelizes e intranqüilos. Têm uma atitude muito rígida, são frios em seu amor, dependentes da aprovação ou desaprovação dos ou­tros. Entretanto, com uma atitude paradoxal, eles julgam severamente esses outros, considerando-os cul­pados, e procuram impor-lhes restrições também.
5. Raiva. Mas o pior ainda está para vir, pois a verdade é que está-se passando algo de muito terrível com o perfeicionista. Ele pode estar até inconsciente disso, mas bem no fundo de seu coração está-se formando uma espécie de rancor. É um ressentimento
100


contra todos esses deveres, contra a fé cristã, contra os outros cristãos, contra ele mesmo, e o que é pior, contra Deus.
Ah, mas este ressentimento não é contra o verda­deiro Deus. Essa é a parte mais triste, e me faz doer o coração. O perfeicionista não se ressente contra o Deus de graça, o Deus amoroso que desceu até nós e que, na pessoa de Jesus Cristo, chegou a morrer na cruz, pagando um preço tão alto. Não; esse ressentimento é contra uma caricatura de deus, um deus que nunca está satisfeito, um deus a quem ele nunca consegue agradar por mais que se esforce, por mais que faça renúncias, por mais que imponha leis a si mesmo. Este deus cruel está sempre elevando o cacife, sempre exi­gindo um pouco mais, para depois dizer:
— Sinto muito, mas você ainda não chegou no ponto desejado.
E é contra um deus assim que a raiva do perfeicio­nista fica a fervilhar. Em alguns casos, essa raiva é identificada, e toda a tirania dos "devos" é desmasca­rada e vista tal qual é: uma terrível farsa satânica para tomar o lugar da verdadeira perfeição cristã. E algumas dessas pessoas conseguem superar tudo isso, encontrar a graça de Deus e ser totalmente libertas.
6. Negação. Muitas vezes esse rancor não é reco­nhecido mas negado. A ira é considerada um pecado terrível e por isso alguns a enterram em si mesmos. Então toda essa mistura de erros teológicos, legalismo, salvação pelo empenho pessoal, torna-se como que um Niágara congelado. É então que se formam no indivíduo os profundos problemas emocionais. Sua variação de humor é tão forte e tão terrível, que ele dá a impressão de ser duas pessoas ao mesmo tempo.
Vivendo sob a tensão do esforço que faz para aceitar um "eu" do qual não consegue gostar, um Deus que não consegue amar, e outras pessoas com quem não consegue conviver, o fardo pode tornar-se excessi­vamente pesado. Então poderão acontecer duas coi­sas: ou ele larga tudo ou tem um colapso nervoso.
Essa atitude de largar tudo é muito trágica. Muitas das pessoas que recebo, no trabalho de aconselhamen-
101


to, eram antes ativos na igreja, e que acabaram largando tudo. Esse largar tudo implica em desistir de tudo. Não é que a pessoa se torne um incrédulo; não. Ele crê com a mente, mas não consegue crer com o coração. Já descobriu que é impossível viver de acordo com seu perfeicionismo. Tentou muitas vezes, mas acabou sentindo-se tão infeliz, que afinal largou tudo.
Outros sofrem um colapso nervoso. O fardo que carregam é pesado demais, e eles sucumbem à carga. Foi exatamente isso que aconteceu ao Dr. Joseph R. Cooke, professor de Antropologia da Universidade do Estado de Washington, em Seattle. Era detentor de um título de Ph. D. e profundo conhecedor da teologia bíblica. Tornou-se professor missionário na Tailândia. Mas após passar alguns anos no campo missionário ficou esgotado. Sofreu um colapso nervoso, não sendo mais capaz de pregar, nem de ensinar e nem ao menos de ler a Bíblia. Como ele explicou depois, "eu era um peso para minha esposa, e estava sem utilidade algu­ma para Deus e para os outros." (Free for the Taicing — Grátis: pode pegar).
Como foi que isso aconteceu? "Criei um Deus impossível, e acabei tendo um esgotamento nervoso." Ah, mas ele acreditava na graça de Deus, até dava aulas sobre o assunto. Mas seus verdadeiros sentimen­tos acerca do deus com quem convivia diariamente não correspondiam ao que ele ensinava. Seu deus era impossível de satisfazar, um deus sem misericórdia e graça.
"As exigências que Deus me fazia eram por demais elevadas e sua opinião a meu respeito tão baixa, que parecia-me estar constantemente vi­vendo debaixo de sua carranca... E ele ficava o dia todo a implicar comigo: "Por que não ora mais? Por que não dá mais testemunho? Será que algum dia você vai adquirir autodisciplina? Como pode abrigar pensamentos tão ímpios? Faça isto. Não faça aquilo. Renda-se. Confesse. Esforce-se mais..." Deus estava sempre jogando seu amor
102


contra mim. Parecia que estava-me mostrando suas mãos traspássadas, e depois olhava para mim acusadoramente e dizia: "Por que você não consegue melhorar? Esforce mais, para viver da maneira que deve."
"Mas, acima de tudo, o meu Deus era um ser que, bem lá no fundo, me considerava pior que um lixo. Ah, ele fazia um grande alarde a respeito de seu amor por mim, mas eu acreditava que só poderia ter aquele amor e aceitação que tanto desejava no meu dia-a-dia, se permitisse que ele esmagasse quase tudo que eu era realmente. Depois de tudo avaliado, parecia que não havia nem uma palavra, ou sentimento, nem um pensa­mento ou decisão minha que Deus apreciasse."
Está vendo por que um fiel seguidor de Cristo, que tem este tipo de pensamento, acaba com um esgota­mento nervoso? E após todos esses anos em que tenho pregado, feito aconselhamento e orado por evangéli­cos, estou chegando à conclusão de que o perfeicionis-mo é uma doença muito comum entre as pessoas da igreja.
A Cura
Existe apenas uma única cura para o perfeicionis-mo: ela é profunda e ao mesmo tempo simples como a palavra graça. O termo graça é em nossa língua a versão do vocábulo grego charis, que significa "cheio de graça, benevolência, favor". Mas no Novo Testa­mento essa palavra tem um significado especial: "um favor dado de graça, não merecido, não comprado e impossível de ser retribuído". A aceitação de Deus para conosco não tem nada a ver com nosso desvalor. Como diz o Dr. Cooke, a graça é o rosto que Deus tem, quando olha para nossa imperfeição, nosso pecado, nossa fraqueza e fracasso. Quando Deus se acha diante do pecaminoso, do que não merece nada, ele é todo graça. A graça é um dom de Deus; está aí grátis, para ser apanhado. A cura do perfeicionismo não pode
103


começar com uma experiência inicial de salvação ou santificação pela graça, e depois prosseguir com uma vida de esforço e empenho em busca da perfeição pessoal. Essa cura se processa através de um viver diário de fé, entendendo que nosso relacionamento com o Pai celestial, terno e amoroso, é um relaciona­mento baseado na graça.
Mas aí é que está o problema, pois isso às vezes não acontece automaticamente. Algumas pessoas não podem entender e viver pela graça, sem que antes ocorra uma cura interior das mágoas passadas. Ela não poderá sentir o amor de Deus, sem que antes haja uma profunda reprogramação interior, para modificar todo o condicionamento errado que foi colocado ali pelos pais e outros familiares, por professores, prega­dores e pessoas da igreja.
Os perfeicionistas foram programados de uma for­ma que se encheram de ideais irreais, realizações impossíveis, amor condicionado a certas coisas, e de uma sutil teologia de palavras. E não conseguem livrar-se de tudo isso da noite para o dia. Essa mudança requer tempo e envolve um processo. Exige compreensão, cura e, acima de tudo, uma reprogra­mação espiritual — a renovação da mente que opera a transformação do indivíduo.
Quero contar como isso ocorreu na vida de um rapaz. Don era de uma família evangélica muito rígida, onde tudo que se cria na cabeça era correto, mas o que se praticava nas relações entre as pessoas era errado. Será que isso é possível? Ah, é. É muito possível. E os pais precisam compreender que o que importa não é apenas o que se ensina verbalmente à criança, mas também o que ela capta pela percepção. O ensino verbal que Don recebeu era um, e o que ele captou pela percepção das coisas era exatamente o oposto. Por causa disso, achava-se em grande conflito.
Don cresceu aprendendo que o amor era condicio­nal e imprevisível. Desde bem pequeno, ele teve que compreender coisas assim:
  Nós o amaremos se...
  Só gostamos de você quando...
  As pessoas só podem gostar de você se você...
104


E ele cresceu com a impressão de que nunca conseguiria agradar aos pais.
Ele me procurou certo dia, quando já estava com trinta e poucos anos, para que eu o ajudasse, pois suas crises de depressão estavam cada vez mais freqüen­tes, mais demoradas, e sempre mais terríveis. Um amigo, na certa bem intencionado, dissera-lhe que seu problema era puramente espiritual.
— Uma pessoa cheia do Espírito nunca deveria sentir tais coisas, disse ele. Deve estar sempre jubilo-sa.
Com isso, Don passou a ter dois problemas: as crises e um sentimento de culpa por ter as crises.
Tive com Don longas conversas. Não estava sendo fácil para ele compreender e aceitar o amor e a graça de Deus, quanto mais interiorizá-la até o mais profun­do de seu ser. Era muito difícil para ele crer e sentir a graça de Deus, devido ao fato de suas experiências de relacionamento, desde a infância até à maturidade, desmentirem tudo que é graça e amor.
E Don complicou ainda mais o problema, pois, durante esses períodos de depressão, procurava rela­cionamentos errôneos com o sexo oposto. Apesar de nunca ir "até o fim", o fato é que utilizava uma moça e depois outra, com o objetivo de sair "da fossa". Isso era pecado e ele o sabia. Esse ato de usar erradamente outro ser humano aumentava seu senso de culpa, e assim ele tinha este senso de culpa, que era verdadei­ro, e o outro, que era falso. E várias e várias vezes ele percorreu o mesmo roteiro: pranto, arrependimento, salvação e renovação de promessas, para mais tarde repetir tudo de novo.
Nosso trabalho com ele levou mais de um ano. Durante este período conseguimos sanar muitas das suas lembranças dolorosas, e reformular novas ma­neiras de enfrentar a realidade. Ele fez tudo que lhe era pedido; fez anotações diárias acerca de seus sentimentos, leu bons livros, ouviu fitas, memorizou muitos textos bíblicos e dedicou bastante tempo à oração, com petições específicas e positivas.
Parte de seu aprendizado ocorreu mesmo em nosso relacionamento. Procurou várias vezes fazer com que
105


eu o rejeitasse e lhe negasse minha aceitação e amor. Estava tentando fazer com que eu agisse do mesmo modo que seu pai e sua mãe agiam, e como ele pensava que Deus agia.
A cura não se deu da noite para o dia, mas graças a Deus ela veio. Devagar, mas sem falhar, Don foi descobrindo o amor através da incrível e incondicional aceitação de Deus para com ele, como pessoa. Suas depressões foram-se tornando cada vez menos fre­qüentes. E ele não teve que se esforçar muito para livrar-se delas; elas mesmas foram cessando, como folhas mortas caem de uma árvore, na primavera, quando nascem as novas. Ele conseguiu aprender a controlar melhor suas ações e pensamentos. Afinal suas depressões cessaram, e hoje ele tem apenas os altos e baixos normais de todos nós.
Sempre que encontro Don sozinho, ele sorri e diz:
— Doutor, ainda parece que é bom demais para ser verdade, mas é verdade.
É isso mesmo. O problema do perfeicionista é que ele foi "programado" para pensar: "Isso é bom demais para ser verdade". E pode ser que o leitor também pense: "É lógico que também creio na graça de Deus, mas..."
Disse Jesus: "Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei." (Mt 11.28.) Não é bom saber disso? Ninguém tem que continuar vivendo de maneira errada, pois há um modo melhor. "E eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso... Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve." (Mt 11.28-30.)
"Meu jugo é suave." O que significa isto? O jugo dele é confortável, porque foi feito sob medida para nós, de acordo com nossa personalidade, nossa indivi­dualidade e nossa humanidade. "Meu fardo é leve." Isto significa que o Cristo que nos prepara esse jugo, nunca nos deixa, mas está sempre ao nosso lado, debaixo do mesmo jugo, sob a forma do Paráclito, Aquele que se coloca ao nosso lado para nos ajudar a carregar aquele fardo e jugo feitos para nós.
Observe a letra deste hino de Carlos Wesley, onde
106


ele descreve o processo da atuação da graça restauradora de Deus sobre o coração pesado de culpas de um perfeicionista.
Desperta Minha Alma
Desperta, minha alma, e afasta teus temores de
culpa.
O sacrifício de sangue foi feito em meu favor.
Diante do trono está minha segurança; diante do
trono está minha segurança,
Meu nome está escrito nas mãos dele.
Ele vive, eterno, nos céus, para interceder por
mim.
Seu amor que a tudo redime, seu precioso sangue
suplicam:
Seu sangue fez expiação por toda a raça humana;
E agora está sobre o trono da graça.
Cinco feridas sangrentas ele tem, recebidas no Calvário;
Elas expressam petições poderosas; fortemente intercedem por mim.
"Perdoa-o; 6 perdoa-o!" dizem. "Perdoa-o, ó per­doa-o!" dizem.
"Não deixe morrer o pecador resgatado."
O Pai ouve-o orar; o seu Ungido.
Ele não pode afastar a presença de seu Filho:
Seu Espírito vê aquele sangue, Seu Espírito vê
aquele sangue
E diz-me que nasci de Deus.
Meu Deus já está satisfeito;  ouço sua voz de
perdão;
Ele me toma como seu filho; não posso mais temer.
Agora, com toda confiança me aproximo dele;
Agora com toda confiança me aproximo dele,
E clamo: "Abba, Pai!"
Carlos Wesley
107


"Certamente ele tomou sobre si as nossas enfermi­dades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos. Por isso eu lhe darei muitos como a sua parte e com os poderosos repartirá ele o despojo, porquanto derra­mou a sua alma na morte; foi contado com os trans­gressores, contudo levou sobre si o pecado de muitos, e pelos transgressores intercedeu."
fís 53.4-6, 12.]


8
O Processo de Cura do Perfeicionismo
O perfeicionismo é a constante sensação de que nunca se consegue atingir o padrão desejado, nunca fazer o que se propõe a realizar de uma forma que seja satisfatória; uma sensação que afeta todas as áreas de nossa vida. Satisfatória para quem? Para todos — para si mesmo, para outros e para Deus. E natural­mente, junto com esta sensação vem uma grande dose de autodepreciação, e autodesprezo, bem como uma forte susceptibilidade com relação às opiniões, apro­vação e desaprovação de outros. E tudo isso é acom­panhado por uma nuvem de sentimento de culpa. O perfeicionista é compelido a sentir-se culpado, quando não for por outra coisa, será pelo fato de não se sentir culpado de nada.
O perfeicionismo produz uma imagem distorcida de Deus, com sensações de dúvida, rebeldia e raiva contra um Deus a quem nunca conseguimos agradar.
Mas existe cura para esse mal, através da graça de Deus, que chega até nós na pessoa de Jesus Cristo. Mas, para se experimentar essa cura, precisamos pôr em prática a receita que irá prescrever-nos a cura.
109


perfeicionismo se inicia com a disposição de nos sub­metermos a esse processo.
Deus Ficará Satisfeito com Você
Deus não somente estará conosco em cada etapa deste processo de cura, como também ficará satisfeito conosco, em cada fase dele. Na Bíblia, a palavra graça acha-se sempre relacionada com a presença do Doa­dor da graça. Nunca devemos empregar esse termo como se estivéssemos descrevendo uma espécie de vantagem que Deus nos concede. A graça significa a presença conosco de um Deus misericordioso. "A minha graça te basta." (2 Co 12.9.) Ali não diz apenas graça, mas, "a minha graça". Uma das frases que Paulo mais gostava de repetir era "a graça de nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Co 16.23; Gl 6.18; Fp 4.23; 1 Ts 5.28; 2 Ts 3.18). A graça não é um artigo de luxo, mas o próprio Senhor, que vem a nós em sua misericórdia. O Deus cheio de amor e de graça nos aceita como somos, e se oferece a nós, ternamente, agora, na situação atual, e não quando nos mostramos um pouco melho­res.
Deus se agrada de nós quando iniciamos este processo de cura, assim como pais amorosos ficam felizes, quando um filho começa a aprender a andar. Essa é uma ocasião de muita alegria num lar, princi­palmente quando se trata do primeiro filho — ele tropeça, derruba cadeiras e talvez até entorte o que-bra-luz um pouquinho. Mas será que os pais o repre­endem, dizem que estão aborrecidos com ele por não estar andando com perfeição? Será que o pai vai ber­rar com ele?
  Ei garoto, você tem condição de andar melhor!
E será que a mãe vai implicar?
Esse passo que você deu foi muito errado, por
isso é que caiu e se machucou!
Está vendo como muitas vezes vemos a Deus como um pai neurótico? Se Jesus estivesse pregando o Ser­mão do Monte dentro deste contexto, ele poderia parafrasear esta idéia da seguinte maneira: "Se vós
111


que sois maus sabeis agir tão bem com seus filhos quando estão aprendendo a andar, quanto mais o Pai celestial ficará satisfeito com cada passo que derdes nesse processo de cura." (Ver Mateus 7.11.) Deus ficará satisfeito conosco a cada passo que dermos.
Quero sugerir aqui os termos de uma oração que pode ser feita em relação a isso, como uma receita que pode ser aviada quantas vezes forem necessárias. "Graças te dou, Senhor, por estares me curando dentro do tempo certo por ti proposto." Dessa maneira veremos o processo não como mais uma fonte de irritação pelo nosso perfeicionismo, ou de raiva por causa da lentidão dele, mas como uma oração de agradecimento pela sua maravilhosa graça, a cada passo que dermos.
Causas Básicas
Nossos problemas emocionais, muitas vezes, têm origem na imagem que fazemos de Deus, no tipo de pessoas que vemos, ou no modo de vida que levamos, nas imagens que obtivemos ao contemplar o mundo através das janelas de nossa infância. A maioria das pessoas constrói seus conceitos e sentimentos acerca do Pai celeste a partir de seu pai ou mãe, e esses sentimentos se tornam interligados e confusos. Mas essas sensações de culpa e sentimentos contraditórios não são a voz de Deus. Na verdade, são a "voz" constante da mãe ou do pai ou de um irmão ou irmã, ou algo que introjetamos, e que exerce pressões sobre nós. Lembremos que os padrões básicos de relaciona­mento que temos para com as outras pessoas derivam dos padrões de relacionamento que tivemos com nossa família.
1. Pais eternamente insatisfeitos. Uma das situa­ções mais comuns nos lares e que produz o perfeicio­nismo e a depressão é o fato de termos pais sempre insatisfeitos. São pais cujo amor aos filhos é condicio­nado, pois exigem que certos níveis sejam atingidos, que se tirem notas altas, ou que se tenha o melhor desempenho possível no campo esportivo ou espiritual.
112


O filho recebe pouca ou nenhuma aprovação, mas muita crítica. Mesmo essa pouca aprovação é condi­cional. Às vezes o incentivo é dado apenas para salientar mais o fato de que "poderia e deveria ter-se saído melhor". Os três 10 que a criança traz no boletim nem são mencionados, mas o 9...
Acho que se você se esforçar mais pode fazer
esse 9 virar 10.
E depois, quando a criança se esforça e faz aquele 9 virar 10, e mostra o boletim para a mamãe, certa de que ela vai ficar muito satisfeita, ela o olha por um instante, e logo depois franze a testa e diz:
Puxa vida, como foi que sujou seu casaco assim?
Deve ter derramado comida na roupa, lá na cantina da
escola. Você ficou andando o dia todo com essa roupa
suja?
Na verdade, o que ela estava dizendo era:
O menino ingrato! Você está-me deixando muito
mal diante das outras pessoas!
Esses pais que nunca estão satisfeitos e que amam os filhos com um afeto condicionado, levam-nos a estabelecer para si alvos sempre inatingíveis e pa­drões que nunca são alcançados. Faz alguns anos uma senhora me disse que todas as vezes em que eu dizia as palavras obedecer ou obediência num sermão, ela se sentia incomodada e com senso de culpa. Quando era criança, a mãe costumava vestir-lhe uma roupa muito bonita, quando ela saía para brincar, e depois lhe dizia:
Olhe, veja se não suja este vestido lá fora. Tive
muito trabalho para passar todos esses babados.
Podemos imaginar como o vestido estava de tardi-nha. E quando ela entrava em casa, a mãe a repreen­dia severamente:
Menina desobediente, você nunca me obedece!
Ela fizera exigências absurdas para  a criança,
pedidos impossíveis de serem obedecidos, completa­mente em desacordo com a realidade infantil, e ao ver que a filha não os atendia, castigava-a, inculcando-lhe assim o senso de culpa. Vivendo num lar profundamen­te religioso, aquela menina, hoje mulher feita, formou
113


horríveis conceitos a respeito de Deus, o que não era de se admirar, e criou uma imagem própria muito desfavorável, toda envolvida numa nuvem de comple­xos de culpa.
2. Situação instável no lar. Em um de seus livros, o escritor inglês Charles Dickens afirmou o seguinte: "No mundo infantil, a maior dor é a da injustiça." A instabilidade emocional no lar produz injustiça. Quan­do os pais não sabem controlar suas próprias emoções, a criança nunca sabe que reação obterá deles.
Beth tinha uma vida espiritual cheia de altos e baixos. Ela se esforçava, mas tinha muita dificuldade em crer e ter confiança. Às vezes, tinha sentimentos de autocondenação e culpa tão fortes, que não agüen­tava vir à igreja. Afinal, fizemos um trato: ela poderia sentar-se no último banco, perto de uma das saídas, e se não suportasse alguma coisa em meu sermão, poderia sair. E muitas, muitas vezes, vi-a sair em momentos que dizia coisas que eu não considerava "pesadas".
Mas que família difícil era a dela! Era como viver pisando em ovos dia e noite. O pai era alcoólatra. A mãe era dessas pessoas caladas demais — calma e silenciosa como um vulcão adormecido, que pode entrar em erupção a qualquer momento. Nunca me esqueço de uma coisa que Beth disse:
— Eu nunca sabia se ia receber um abraço ou um tapa. E também não sabia o porquê de um nem de outro.
Então, naturalmente, ela concluiu que Deus tam­bém era imprevisível, irracional e indigno de confian­ça, como seus pais.
Além dessas cicatrizes emocionais, ela possuía também cicatrizes físicas. Fizera uma cirurgia para corrigir um deslocamento do queixo, e as cicatrizes tinham deixado marcas dolorosas em sua lembrança, as quais precisavam ser curadas, para que ela pudes­se crer nesse Deus de quem provém toda boa dádiva e dom perfeito, no Deus em que não há a menor mudan­ça nem sombra de variação (Tg 1.17).
Não é difícil compreender que um lar destes pode tornar-se a sementeira de pessoas emocionalmente
114


mutiladas e perfeicionistas. Pais que nunca estão satisfeitos, rejeição própria, padrões insuportáveis — todas essas coisas criam nos indivíduos reações erra­das.
Está entendendo por que a cura é um processo que exige tempo, esforço, e muitas vezes a assistência de um conselheiro, e sempre a comunhão e o apoio em amor dado pelo corpo de Cristo? Tiago dá a entender que, em muitos casos, essa renovação, essa reprogra­mação e cura só se dão quando temos comunhão uns com os outros, e oramos uns pelos outros (Tg 5.16).
A Força da Timidez
Muitas das mágoas que recebemos neste mundo são difíceis de serem definidas. Elas fazem parte dessa vida que levamos num mundo caído. Ben era uma das pessoas mais tímidas com quem já trabalhei. Às vezes, nem conseguia ouvir o que ele dizia:
O que foi que disse, Ben?
Começamos um trabalho no sentido de fazê-lo falar mais alto. Fazia com que lesse para mim e dizia:
Leia um pouco mais alto, Ben. Diga o que quer.
Fale alto.
Ele tinha tanto medo de ser uma carga para os outros, que às vezes quem estava por perto chegava a sentir-se incomodado. Talvez até quiséssemos verifi­car se ele não estaria carregando um cartaz no peito e outro nas costas com os dizeres: "Perdoem-me por estar vivendo."
Você já ouviu falar da "Ordem dos Indivíduos Tímidos e Mansos"? Parece até que formam o grupo dos capachos. Sua insígnia oficial é a luz amarela: "Atenção, cuidado". Seu lema é "Os mansos herdarão a terra, isto é, se todos estiverem de acordo". Essa associação foi fundada por Upton Dickson, que escre­veu um panfleto intitulado "A força da timidez". Pois bem, o Ben poderia ser um dos membros fundadores dessa agremiação.
No trabalho que empreendemos para fazê-lo ex­pressar-se melhor, ele começou a desenvolver-se, mas
115


sua cura teve início mesmo num seminário para ca­sais. Ali, cercado por um grupo de casais que o amavam, aceitavam e apoiavam, ele começou a recor­dar uma série de fatos dolorosos, guardados na lem­brança. Recordava-se de haver escutado os vizinhos falando de sua família. A mãe dele era uma mulher muito frágil e nervosa. Sofrerá um esgotamento nervo­so e passara muitos anos na condição de quase inváli­da. E ele se lembrava de ter ouvido os vizinhos cochichando que ela tivera o esgotamento, porque o garotinho seguia-a constantemente, sempre agarrado à barra de sua saia, e nunca a deixava em paz. É um peso muito grande para se colocar nos ombros de uma criancinha e até mesmo de um adolescente: "Você é o causador do esgotamento de sua mãe; é por sua causa que ela é uma inválida." Ben começou a chorar convulsivamente, ao sentir alívio e ao se conscientizar de que o grupo de fato o aceitava e o amava! E assim foi removido dele o fardo pesado que carregava, pois pôde parar de se penitenciar interiormente, como tinha feito a vida toda, por uma acusação injusta.
Quanta mágoa e sofrimento as pessoas infligem umas às outras, devido a comentários casuais como este! Algo que talvez nunca chegue a ser conhecido. Quantas vezes sementes de mágoa, humilhação e ódio são lançadas numa mente infantil, e ali infeccionam, tornando-se em gangrena, e um dia chegam a afetar toda a personalidade do indivíduo já adulto.
Às vezes ouvem-se comentários assim:
Acho que quando ele crescer vai ficar igual ao
Tio Ed.
E quem é esse Tio Ed? Bom, o Tio Ed foi um homem que passou dez anos numa penitenciária e morreu num asilo de doentes mentais.
Ou então coisas assim:
Puxa, olha só a cara desse garoto. Não é pena
que não tenha saído com nem um pouco da beleza do
irmão?
Ou então é uma garotinha, cuja irmã é mais bonita que ela, e que escuta os parentes cochichando em uma festinha de família:
116


Não; essa é a mais feiosinha!
E o que mais poderíamos dizer a respeito de todas as mágoas e sofrimentos, sensos de culpa, temores e ódios que estão relacionados com a obsessão ocidental — o sexo? Essa obsessão vai desde as curiosidades infantis, quando as crianças examinam o corpo umas das outras, até os irmãos mais velhos que usam de ameaças ou chantagens para tirar vantagem dos me­nores, despertando sentimentos fortíssimos — que são altamente destrutivos nessa idade — e que seriam como uma descarga de 800 volts num fio com capacida­de 110. Passa depois para pais e padrastos que tratam as filhas não como filhas, mas como esposas ou aman­tes. Sendo como é, o sexo pode produzir o mais mortal dos conflitos: pavor e desejo, medo e prazer, amor e ódio — tudo misturado, provocando um terremoto emocional que pode destruir o equilíbrio interior de qualquer um.
Raiva
Estamos falando de ódio — pois esse é o verdadeiro problema, não é? É a raiva, o ressentimento, qódio que fica sepultado bem lá no fundo de nosso ser. Às vezes, quando estou fazendo trabalho de aconselhamento com uma pessoa, pergunto:
A palavra raiva seria forte demais para definir
seu sentimento?
E na maioria dos casos, elas abaixam a cabeça e dizem:
Não; é exatamente isso.
Não se deixe enganar por uma aparência exterior de mansidão. Ainda não encontrei uma pessoa com o problema do perfeicionismo, que não tenha também raiva de alguma coisa. Esse sentimento pode estar escondido debaixo de camadas e camadas de timidez, mansidão, religiosidade; mas está ali.
No processo de cura temos que fazer um esforço para desmascarar a raiva, trazê-la perante Deus e colocá-la na cruz, que é onde deve ficar. Enquanto ela não for reconhecida, encarada de frente e resolvida,
117


não haverá cura. Para que haja a solução do problema é preciso que se perdoe a todas as pessoas envolvidas naquela mágoa e humilhação; é preciso desistir de todos os projetos de vingança contra elas; ê preciso permitir que o amor divino, que é todo perdão, se derrame sobre a alma culpada.
Certa vez fiquei muito surpreso ao receber um telefonema de um professor de uma faculdade evangé­lica. Mencionou uma afirmação que eu fizera, quando estivera pregando em sua escola.
Lembro-me de que o senhor disse: "Sempre que
alguém reconhecer em si mesmo uma reação despro­
positada em relação ao estímulo que a provocou,
cuidado. É provável que tenha descoberto um proble­
ma emocional escondido no fundo de seu ser." Acho
que foi isso que aconteceu comigo.
Então, ele veio até nossa cidade e passou uma semana em nossa companhia. Era um homem muito culto, muito espiritual, e com um amplo conhecimento das Escrituras. Mas tinha havido uma confrontação na faculdade, e agora, de repente, este homem, sempre controlado, um erudito, estava tendo reações fortíssi­mas de raiva. A palavra mais exata seria fúria. Estava chocado consigo mesmo, e com um forte senso de culpa. Não sabia mais o que fazer, e parecia que não estava adiantando ler a Bíblia, orar e tentar deixar a coisa nas mãos de Deus. Estava chegando ao limite máximo de sua resistência. Em grande agonia ele me confessou:
Não consigo acreditar, mas quando aquilo acon­
teceu, tive vontade de sair de casa e matar alguém.
Não tivemos muita dificuldade em descobrir a raiz do problema, mas ele não quis aceitar. Quando me narrou os fatos, disse várias vezes:
Ah, mas isso é tolice... não pode ser isso.
Nada é toüce, repliquei. Conte-me tudo.
Ele fora uma criança inteligente, precoce, um "sabe-tudo" desde pequenino. Todos conhecemos esse tipo de criança — tem seis anos, mas parece que vai fazer quinze. Era tão inteligente que tinha dificuldade para conviver com os que não o eram. Era sempre o
118


primeiro da classe, mas o último no pátio de recrea­ção. O recreio era um inferno para ele. Então ocorriam aquelas cenas inesquecíveis, em que o garoto inteli­gente, mas sem coordenação, era vítima das zomba-rias dos outros. Os meninos mais fortes e mais briguen-tos o atormentavam, torturavam, derrubavam-no e o maltratavam. E o resultado foi que fizeram dele um mutilado emocional. Estava admirado com a nitidez de suas lembranças. Recordava-se do nome de cada uma daquelas crianças, e até da roupa que vestiam. Estava tudo armazenado ali, embora houvessem passado mui­tos anos. E agora ele descobrira esse "veio" de ódio. Ao narrar cada incidente, mencionava o nome da criança implicada. Então, fizemos com que perdoasse um por um.
— Você perdoa o Dan? Perdoa a Sally? Perdoa o...
Parece simples? Pelo contrário, foi terrivelmente doloroso. Mas, em oração, ele encontrou forças para perdoar a cada um daqueles pequenos que haviam infernizado sua vida. E o Espírito Santo removeu o "ferrão" que havia naquelas recordações, e esvaziou delas a energia destrutiva. Isso foi o início de uma transformação profunda, e depois de algum tempo o poder restaurador de Deus passou a ocupar os doloro­sos e tortuosos vãos que haviam ficado em seu coração.
A Justificação de Deus
Esse ressentimento básico do ser humano, na ver­dade, é uma raiva contra as injustiças, como um protesto pessoal: "Fui uma vítima. Não tive poder de decisão. Não fui eu quem tomou a decisão de nascer. Não tive participação na escolha de meus pais. Não fui eu quem escolheu meus irmãos. Não escolhi minhas dificuldades e enfermidades. Fui uma vítima, e essas minhas mágoas, humilhações e cicatrizes são injus­tas." E muitas vezes vemos esta raiva escondida manifestar-se em perfeicionistas que querem corrigir todos os erros que vêem, e acertar todos os erros do mundo."
O lugar certo para a restauração e cura desta
119


personalidade lesada é a cruz — o ponto máximo de todas as injustiças. Em seu profundo livro, P. T. Forsythe chama a cruz de "a justificação de Deus" (The Justification of God — A justificação de Deus). Ali Deus demonstrou sua total identificação conosco em nossos sofrimentos imerecidos bem como nos castigos imerecidos. Não houve injustiça maior que a da cruz. Ninguém sofreu maior rejeição que o Senhor. As acusações que lhe fizeram, o julgamento, sua crucifi-cação foram atos terrivelmente injustos.
Nunca podemos dizer: "Deus não sabe o que é sofrer", e nunca podemos pensar que Deus permite que passemos por coisas que ele próprio não desejaria suportar. Ele foi levado como cordeiro para o matadou­ro; foi espoliado de todos os seus direitos; teve todos os seus poderes cassados temporariamente. Quando es­tava sendo humilhado, despido, criticado, ridiculari­zado, não teve o apoio dos amigos que o abandonaram e fugiram. E os inimigos diziam:
— Então você é o Filho de Deus, hein? Então desça e prove isso, se é que é tão poderoso!
Quando olhamos para a cruz, começamos a ver como Cristo é, vemos a verdade profunda, e não apenas a bela e brilhante verdade de Deus para todos nós. A cruz é a verdade nua e crua, a repulsiva verdade a nosso respeito — a nossa realidade, o ódio, a inveja, a cobiça, o egoísmo e a raiva que permeiam este mundo decaído e pecaminoso dos seres humanos. A verdade a respeito das coisas deste mundo foi revelada na crucificação do Filho de Deus. Agora sabemos que Deus compreende muito bem a vida num mundo como este. Ele é o Médico farido; é o nosso Sumo-Sacerdote que foi afetado pelas mesmas enfer­midades e sentimentos.
Essa é a inacreditável boa-nova que damos aos perfeicionistas, e que parece boa demais para ser verdade; a boa-nova para todos os que não conseguem encarar de frente essas sensações conflitantes que há em seu interior, e que pensam não poder abrir-se com Deus. Tenho ouvido essa frase milhares de vezes em meu gabinete:
120


— Como posso falar disso com Deus? Como posso falar a ele de minhas mágoas, minhas humilhações, minha raiva, meu ressentimento contra as pessoas, e contra ele também? Como vou falar isso com ele?
Não está vendo? Ele passou por tudo isso na cruz; tudo isso e muito mais.
Ali na cruz, Deus, na pessoa de Cristo, absorveu em seu amor todos esses tipos de sensações dolorosas. Elas penetraram em seu coração, traspassaram sua alma, e se dissolveram no oceano de seu perdão, no mar de seu esquecimento.
O apóstolo Paulo, que inicialmente era o pior inimigo da fé cristã, ao participar do assassinato de Estêvão, o primeiro mártir, era um dos que odiavam a Jesus Cristo, um que atirou insultos a ele, e que desencadeou toda a sua fúria contra ele. Depois que descobriu que toda aquela fúria tinha sido absorvida pelo coração de Deus, ele escreveu o seguinte: "Deus estava em Cristo (e vamos aplicar isso a nós) reconcili-ando-me consigo, não me imputando as minhas trans­gressões." (Ver 2 Coríntios 5.19.)
Não há nada que possamos dizer a Deus sobre nossas mágoas, sofrimentos, ódios e raivas que ele já nãó tenha ouvido. Não há nada que possamos levar a ele, que ele não compreenda. Ele nos receberá com amor e graça.
Como Jesus já sabia que íamos pensar que isso era bom demais para ser verdade, na noite anterior à sua crucificação ele instituiu a Ceia do Senhor. Pegando pão e vinho, coisas simples que todos nós podemos pegar, sentir, provar, cheirar e absorver em nosso corpo, ele disse: "Comam e bebam isso, para se lembrarem de tudo." (Ver Mateus 26.26-28.)
Quando pegamos o corpo e o comemos, de suas pisaduras recebemos cura e restauração para nossas dores. Quando tomamos o vinho, recebemos seu per­dão e^ amor, no corpo e na alma.
"O maravilhoso Médico ferido, partido por nós, damos a ti todos os pedaços de nossa vida, e pedimos que tu os reajuntes, tornando-nos novamente bem ajustados. Amém."
121


"Porque não ousamos classificar-nos, ou compa­rar-nos com alguns que se louvam a si mesmos; mas eles, medindo-se consigo mesmos, e comparando-se consigo mesmos, revelam insensatez. Nós, porém, não nos gloriaremos sem medida, mas respeitamos o limite da esfera de ação que Deus nos demarcou e que se estende atê vós. Aquele, porém, que se gloria, glorie-se no Senhor. Porque não é aprovado quem a si mesmo se louva, e, sim, aquele a quem o Senhor louva."
[2 Co li). 12,13, 17.18.J
"Eis que te comprazes na verdade no íntimo, e no recôndito me fazer conhecer a sabedoria."
[SI 51.6. J



9
O Super "Eu" ou o Verdadeiro "Eu"?
O perfeicionista precisa aprender a ser como real­mente é, em Cristo. Contudo, quando se dispõe a ser como é de verdade, ele se depara com suas piores falhas, e precisa de um tratamento mais incisivo e de uma reprogramação mais drástica. A mais terrível conseqüência do perfeicionismo talvez seja a alienação do verdadeiro "eu". Vejamos como se inicia essa trágica perda, e como se dá.
Durante todo o processo de crescimento, a criança recebe informações sobre si mesma, sobre Deus e sobre outras pessoas, bem como seu relacionamento com elas. Essas informações são dadas de forma direta, ou captadas por ela, intuitivamente. A criança recebe impressões diretamente através de palavras e ações, mas também pelo que se deixa de dizer ou fazer. Geralmente, é a soma de vários fatores. E o pequenino está sempre recebendo mensagens, num processo lento mas constante, e bastante inconsciente. Então, aquele que recebe mensagens negativas chega à seguinte conclusão: "Não sou aceito nem amado do modo como sou. Já tentei todos os meios de obter a aprovação dos outros, sendo como sou. Agora, só poderei ser aceito e amado se me tornar diferente, outra pessoa."
É óbvio que a criança não se senta, pensa e conclui
123


isso. Ela nem se dá conta do que está-se passando, isto é, que não está sendo satisfeita em suas necessidades básicas mais profundas, necessidades criadas por Deus e que são essenciais ao desenvolvimento do ser humano. Ela nunca experimenta sentimentos de que precisa muito, sentimentos como segurança, aceita­ção, ajustamento e valor próprio. A necessidade que tem de ser amada e de amar a outros também nunca é satisfeita. Em vez disso, forma-se nela uma crescente e profunda ansiedade, bem como sentimentos de insegu­rança, desvalor e rejeição. E é assim, então, que o adolescente começa a longa e tortuosa caminhada para tornar-se outra pessoa.
A tragédia disso tudo é que a individualidade daquela pessoa, a personalidade por Deus projetada para ela não tem oportunidade de desenvolver-se. Seus talentos próprios não são desenvolvidos. Seu verdadeiro "eu" é sufocado ou rejeitado, e no lugar dele aparece um falso "eu". Assim todas as energias espirituais que deveriam ser canalizadas para a for­mação de uma personalidade própria, planejada por Deus, são desviadas para criar uma imagem falsa e idealizada da pessoa.
Infelizmente, esse processo de autodestruição não é detido quando a pessoa se converte. O perdão e a amorosa aceitação de Deus e sua graça penetram apenas algumas das camadas mais externas deste "eu" irreal, imprimindo-lhe um novo espírito de since­ridade.
Mas, quando a distorção da personalidade é mais grave e as emoções sofreram traumas fortes, é neces­sário haver uma cura mais profunda. Pois, muitas vezes, aquele falso eu passa também para a vida espiritual, e se ajusta às novas experiências religiosas.
O Super "Eu" Versus o Verdadeiro "Eu"
O que são o super "eu" e o verdadeiro "eu"? O super "eu" é uma imagem falsa, idealizada, que acre­ditamos precisar ter para sermos aceitos e amados pelos outros. O super "eu" é uma idéia imaginária que
124


temos de nós mesmos. O que acontece é que fomos levados a crer que, se fôssemos nós mesmos, e se os outros nos conhecessem como somos, não nos ama­riam, e então nos esforçamos para nos tornarmos esse super "eu", a fim de conquistarmos o amor e a aceitação dos outros.
E ainda estendemos esse tipo de raciocínio distorci­do até a Deus, que é a Perfeição absoluta, que exige perfeição, e a quem só podemos mostrar nosso lado bom. Só podemos deixar que Deus veja o nosso super "eu", e nunca o nosso verdadeiro "eu".
Deixe-me fazer uma pergunta bem pessoal. Quando você entra na presença de Deus, em oração ou medita­ção, qual dos dois "eu" você lhe mostra? Fiz esta pergunta certa vez a um evangelista de muito sucesso, que passou por um processo de aconselhamento comi­go devido a problemas emocionais e espirituais. Inda­guei a ele:
Em sua comunhão com Deus, quando o busca em
oração, qual o "eu" que apresenta a ele? Em sua
mente, qual a imagem de si mesmo que está apresen­
tando a ele?
E depois falei:
Não responda já. Pense um pouco, sem pressa.
Vamos ficar alguns minutos aqui sentados, enquanto
você pensa nisso.
Pois bem, ele ficou em silêncio durante bastante tempo, o que era muito incomum para ele. Depois respondeu:
Sabe de uma coisa? Eu nunca tinha pensado
nisso dessa forma antes. Mas tenho que ser sincero
com você. Acho que sempre entro na presença de Deus
com minha melhor imagem e com minha auréola de
santidade no lugar bem certinho. Sinceramente, tenho
que reconhecer que, quando me imagino na presença
de Deus, sou sempre o super "eu". Acho que nunca me
apresentei com meu verdadeiro "eu", tal como sou.
Nesse ponto ele abanou a cabeça e disse:
E já cantei aquele hino "Tal qual estou" milhares
de vezes, mas nunca vivi esta realidade, quando entro
na presença de Deus.
125


E ele não e o único. Existem muitas maneiras sutis de apresentarmos a Deus o nosso super "eu", e ocultarmos o verdadeiro. Uma dessas maneiras é a /uturística. "Bem, Senhor, tu sabes que naturalmente ainda não sou este super 'ser'. Tu sabes disso e eu também o sei. Ainda não sou este super 'eu', mas algum dia o serei. Algum dia serei este supercristão. Algum dia vou orar muito, ler muito, testemunhar e fazer coisas maravilhosas para ti. Algum dia serei co­mo essa imagem idealizada que tenho de mim. Serei o super 'eu'. Então, Senhor, não ligue para este verda­deiro 'eu'. Ele é apenas temporário. Olhe para aquele 'eu' que ainda vou ser."
E há também a maneira penitente. E é assim que o perfeicionista adquire a imagem própria negativa e até autodesprezo. Diz ele: "Bem, Senhor, não olhe para meu verdadeiro 'eu', com todos esses pecados, falhas e imperfeições. Não olhe para ele, pois estás vendo o quanto desprezo esse meu verdadeiro 'eu', não estás? E acredito que tu também desprezas esse meu verda­deiro 'eu', com todas as minhas falhas e imperfeições. Mas tu sabes quais são as minhas metas, Senhor. Já que o Senhor odeia esse meu verdadeiro 'eu', como eu o odeio, poder ver que estamos do mesmo lado, e portanto, sou realmente o super 'eu'."
E desse modo, sutilmente, a autodepreciação se torna uma perpétua mortificação para impressionar a Deus. Então esperamos que ele nunca veja nosso verdadeiro "eu", mas olhe somente para o nosso super "eu". E como Deus não tolera esse nosso verdadeiro "eu", feio e horripilante, e como estamos sempre dizendo a ele que também não o suportamos, ele deve estar muito impressionado com nossos altos valores, deve perceber como realmente somos, e portanto aceitar-nos e amar-nos.
O mal disso é que o nosso verdadeiro "eu" ficou emocionalmente preso em algum dos níveis da infân­cia, e é por isso que nossa personalidade às vezes produz atitudes tão infantis. Ficamos parados em algum ponto do passado; nunca crescemos realmente. É claro que fisicamente temos o corpo de um adulto,
126


mas espiritual e emocionalmente vivemos num plano de imaturidade.
O Super "Eu" e os Sentimentos
É na área das emoções que o perfeicionista encon­tra seus problemas mais sérios, porque a imagem do Super "eu" não admite certos sentimentos. Geralmen­te, ele tem uma imagem de Jesus que não é bíblica, de um Jesus manso, suave, dócil. É um Jesus mole demais, um ser estóico, que nunca exterioriza suas emoções. Então ele se mantém sob rigoroso autocontrole, e nunca manifesta seus sentimentos mais fortes.
Entretanto, não existem boas ou más emoções. As emoções são apenas emoções. Elas resultam de toda uma gama de elementos que procedem de nossa perso­nalidade. Nenhuma emoção, em si mesmo, é peca­minosa. A maneira como agimos perante elas é que determinará se são erradas ou certas. A maneira como as dirigimos determinará se elas nos conduzirão para o pecado, ou para a justiça. As emoções, em si mesmas, são um aspecto muito importante de nossa constituição pessoal, que nos é dada por Deus.
Uma emoção que o super "eu" geralmente conside­ra errada é a raiva. Aprendi de pequeno uma noção desumana, antibíblica e altamente destrutiva de que a raiva sempre é uma emoção pecaminosa. Levei muitos anos para livrar-me dessas atitudes. Elas quase des­truíram minha vida espiritual e meu casamento, pois tive que aprender a expressar minha raiva para com minha esposa da maneira correta. Toda pessoa, para ser um bom cônjuge, tem que aprender a expressar sua raiva de maneira aceitável.
Em Marcos 3.5, lemos que Jesus olhou-os "ao redor, indignado". Embora este seja o único texto do Novo Testamento que diz diretamente que Jesus se irou, podemos inferir, com toda segurança, que ele teve raiva também, quando expulsou os cambistas do tem­plo e quando chamou algumas pessoas de "insensatos e cegos", "sepulcros caiados", "assassinos", "serpen­tes" e "hipócritas". (Ver Mateus 23.) Jesus nunca foi
127


mais divino do que nesses momentos em que manifesta­va uma ira ardente. Muitas vezes o amor anda de mãos dadas com a ira; e, na verdade, a ira resulta do perfeito amor.
Nós, evangélicos, temos um estratagema semântico que parece muito adequado, mas que confunde as pessoas. Nós dizemos:
— Ah, isso não é a raiva; é ira santa.
Por que não falamos abertamente e dizemos que existe um modo correto de usar a ira, e que a raiva, em si mesma, não é uma emoção pecaminosa? Seria bem menos confuso.
O que realmente importa é a maneira como agimos com ela — o modo como a externamos e como a resolvemos. E quando temos essa falsa imagem de nós mesmos, este super "eu" que não pode ter nem expres­sar nenhum sentimento de raiva, tornamo-nos perfei­tos receptáculos para distúrbios emocionais e depres­são.
Não confundamos, porém, raiva com ressentimen­to, pois são duas coisas totalmente diversas. Uma raiva controlada e expressa da maneira correta é uma coisa; descontrolada e expressa de modo errado é outra. O apóstolo Paulo fez uma distinção bem nítida entre a raiva certa e o ressentimento. Ele comparou a raiva com ódio, malícia, amargura e todas essas coisas, fazendo diferença entre elas. É interessante notar que ele usa um tom imperativo ao falar de ira: "Irai-vos, e não pequeis." (Ef 4.26.) O que Paulo disse não foi: "Está bem, vou permitir que vocês fiquem com raiva de vez em quando, para lhes fazer uma conces­são." O que ele ordenou foi: "Irem-se, tenham raiva!" Mas logo acrescentou: "Mas tenham muito cuidado." Ele sabia que a raiva pode levar-nos a ressentimentos, malícias e amarguras, se não for controlada com muito cuidado. O que Paulo estava dizendo era o seguinte: "Expressem sua raiva, mas cuidado para que ela não os leve a amarguras, ressentimentos ou ódio." E o mais estranho em tudo isso é que, se não aprendermos a externar nossa ira completamente e a resolver a dificuldade, podemos tornar-nos ressentidos e amar-
128


gos. Muitos casamentos estão sendo destruídos, porque os cônjuges não aprenderam a externar sua raiva da maneira certa. Estão deixando a coisa ferver em fogo baixo, com a tampa por cima, encobrindo uma porção de sentimentos negativos, mas depois procuram tirar desforra com mil e uma represálias sutis.
Ire-se, mas tenha cuidado. Quando não sabemos a maneira correta de externar a raiva, ela se transfor­ma em ressentimento e amargura. É isso que acontece com o perfeicionista que não se dá o direito de expressar sua raiva; que não dá a si mesmo o direito nem de reconhecer que está com raiva. Ele a reprime e a sufoca bem no fundo de seu ser, e ela fica ali fervilhando e envenenando sua alma, para depois manifestar-se sob a forma de problemas emocionais, conflitos conjugais e até de doenças físicas.
A raiva é uma emoção colocada por Deus no coração humano, e é parte da imagem de Deus no homem, para ser utilizada com fins construtivos.
O Super "Eu" e os Conflitos
O super "eu" pensa que temos que nos relacionar com os outros sempre muito bem, que temos que ser amados por todos, e que nunca pode existir nenhum conflito entre cristãos.
O perfeicionista que fizer uma visita a um campo missionário terá um grande choque, pois logo percebe­rá que os missionários têm mais dificuldade de relacio­namento entre si do que com os incrédulos que estão evangelizando ali. Vemos isto em nossas próprias igrejas. Mas ainda assim persiste o mito do perfeicio­nista: "Mas eu tenho que ser perfeito."
Esta noção é bíblica? A verdade é que nem dois grandes homens como Paulo e Barnabé conseguiram ficar juntos no trabalho. E muito sabiamente separa­ram-se, e acertadamente a igreja primitiva impôs as mãos sobre eles, os abençoou, e os enviou em direção opostas.
Deus usou a fraqueza humana deles para estabele­cer dois trabalhos missionários em vez de um. E o
129


Senhor usou também esse conflito entre eles, para favorecer o amadurecimento de João Marcos, que se tornou o grande escritor do Evangelho de Marcos.
Embora seja fato que não podemos trabalhar com todo mundo sem conflitos, isso não quer dizer que temos o direito de ficar ressentidos com quem quer que seja. Isso não significa também que podemos odiar as pessoas ou ficar amargurados. Mas quer dizer que não temos obrigatoriamente de nos sentir bem e à vontade na companhia de todo mundo. E não permita que seu super "eu" se torne um demoniozinho sempre a dizer-lhe:
— Bom, se você não está conseguindo se relacionar bem com os outros a culpa é toda sua. O problema aí é você mesmo. Se resolvesse essa questão aí, poderia relacionar-se melhor.
Paulo nunca disse: "Quem for cheio do Espírito Santo conseguirá viver com todo mundo pacificamente e em harmonia." O que ele disse foi: "Se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens." (Rm 12.18.) O problema pode estar na outra pessoa. E o apóstolo não acrescenta coisas assim: "É; e isso é problema seu também. Você tem a responsabi­lidade de ajudar o outro a melhorar também." Existe um poemazinho que diz isso muito bem:
Viver no céu com os santos,
Ah, isso seria uma glória;
Mas viver aqui na terra com os santos...
Isso já é outra história.
O verdadeiro "eu" enfrenta muitas diferenças, conflitos, e ama os outros e se interessa por eles o suficiente para confrontá-los com uma atitude de amor. Mas o verdadeiro "eu" sabe também que, às vezes, a melhor e única solução, para certos proble­mas é, no dizer de Stanley Jones: "Concordar em que é preciso discordar harmonicamente".
O Super "Eu" e a Felicidade
O super "eu" acredita no seguinte mito: "Tenho que estar sempre superfeliz." Mas você está sempre feliz? Nunca fica triste? Está sempre borbulhando de
130


alegria e dizendo: "Glória a Deus!"? Nunca passa por lutas? Não existe nunca um momento em que o céu parece de ferro? Não há ocasiões em que você faz as coisas simplesmente por dever, sem sentir nenhuma alegria?
No Jardim do Getsêmani, Jesus disse aos discípulos o seguinte: "A minha alma está profundamente triste até a morte." Ele estava-se contorcendo no chão; estava transpirando abundantemente numa terrível luta interior entre suas emoções e sua vontade. Suas emoções diziam: "Pai, tu podes todas as coisas; passa de mim este cálice, se for possível." Mas sua vontade, que estava firme como um ímã voltado para o Pólo Norte, dizia: "Contudo, não se faça a minha vontade mas a tua." E esse tipo de luta, por vezes, nos deixa com a alma profundamente perturbada.
A felicidade depende muito do que acontece conos­co, de situações exteriores que se acham fora de nosso controle. A palavra certa para nós cristãos é gozo. O gozo fala de uma condição interior que tem a ver com nossa situação pessoal, e não com as circunstâncias que nos cercam. O gozo é aquela calma interior situada no núcleo central de uma tempestade. Nossos sentimentos podem ser tempestuosos, mas pode haver em nosso interior um senso de retidão em relação à vontade de Deus. Mas isso não quer dizer que temos que sair por aí com nossas máscaras de super "eus", sorrindo sempre, dentes brilhantes, dizendo: "Glória a Deus!"
O Realismo do Verdadeiro "Eu"
Nós, os cristãos, podemos ser realistas. Isso quer dizer que não precisamos ter medo de enfrentar o pior, o que há de mais terrível e mais doloroso. Não precisa­mos ter medo de expressar nossos sentimentos de tristeza, dor, mágoa, solidão, dificuldades e até mesmo de depressão. Por vezes, podemos até experimentar fortes sensações de depressão, como a que Elias teve após seu grande momento de triunfo: "Ó Senhor, para mim basta. Quero morrer."
131


A vida de Jesus apresenta uma sinceridade muito cortante — todas as suas emoções são registradas claramente e expressas com toda liberdade, sem ne­nhuma indicação de vergonha, senso de culpa ou de imperfeição. Tomemos como exemplo as atitudes de Jesus, e não um super "eu" criado pela imaginação. Não precisamos ter medo de expressar nossos verda­deiros sentimentos, e sermos o nosso verdadeiro "eu" em Jesus Cristo.
Quando esperdiçamos nosso tempo e energia pro­curando ser super "eus", estamos-nos privando do desenvolvimento e da amizade de Deus. Nunca deixa­mos que Deus aceite e ame o nosso verdadeiro "eu", pelo qual Cristo morreu. E esse é o único "eu" que Deus realmente conhece e vê. O super "eu", na verdade, é uma ilusão de nossa imaginação, uma imagem falsa, um ídolo. Nem tenho muita certeza se Deus vê este nosso super "eu". Em Jesus podemos ser nós mesmos, sem necessidade de nos compararmos com os outros. Ele quer nos curar e nos transformar, para que o verdadeiro "eu" possa se desenvolver, e então cheguemos a ser como ele deseja que sejamos.
O super "eu" custa muito para morrer. E o super "eu" religioso é mais difícil ainda. Se você perceber que está-se agarrando a ele com muita força, espero que ouça a voz do Espírito Santo a dizer: "Abandone-o! Largue-o! Só depois disso é que eu e você poderemos iniciar todo o processo de cura, para a formação do seu verdadeiro 'eu'."
Quando você parar de esperdiçar suas energias espirituais nesse esforço de manter este falso super "eu", e começar a usá-las em cooperação com o Espíri­to Santo para o seu verdadeiro crescimento, verá que está livre em Jesus Cristo, liberto do senso de dever. Você estará acima da aprovação ou desaprovação dos outros, livre da terrível sensação de condenação devi­do à lacuna existente entre o que deseja ser e o que realmente é.
E o que preenche esta lacuna? Tenho uma revela­ção para você: todas as perfeições de Jesus, o verda­deiro super-homem de Deus, estão à nossa disposição,
132


como um dom gratuito dele, proveniente de sua cruz, e essas perfeições dão de sobra para preencher as lacunas de nossa vida.
Paulo disse isso muito bem quando escreveu: "Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção." (1 Co 1.30.)
133



"Por que estás abatida, ó minha alma? por que te perturbas dentro em mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu. Sinto abatida dentro em mim a minha alma... Um abismo chama outro abismo, ao fragor das tuas catadupas; todas as tuas ondas e vagas passaram sobre mim. As minhas lágrimas têm sido o meu alimento dia e noite, enquanto me dizem continuamente: O teu Deus, onde está?"
[SI 42.5-7, 3.)




10
Verdades e Inverdades Acerca da Depressão
A depressão é um problema muito comum entre cristãos. E o leitor poderá perguntar: "Mas como pode ser isso? Um verdadeiro cristão deprimido? As duas idéias são contraditórias e incompatíveis. Se uma pessoa nasceu do Espírito e certamente se ela foi cheia do Espírito, parece impossível que ela fique deprimida. E com certeza, o fato de ela estar sofrendo de depres­são deve ser uma indicação de que há alguma coisa errada com ela, de que precisa acertar alguma coisa com Deus. Isto talvez seja um sinal de que há pecado em sua vida."
Tudo isso pode parecer muito certo e simples, mas, na verdade, não resiste a um confronto com as Escritu­ras, nem com a realidade cristã, nem com os princípios da Psicologia. E além disso, não se enquadra na experiência de muitos dos santos.
O Cristão Pode Ficar Deprimido
Tem lido os salmos de Davi ultimamente? "Por que estás abatida, ó minha alma?" (SI 42.5.) "Sinto abatida dentro em mim a minha alma." (SI 42.6.)
"Por que te perturbas dentro em mim? Espera em
135


Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu." (SI 42.5.)
Ou já ouviu Elias dizer: "Toma agora, ó Senhor, a minha alma." (1 Rs 19.4.) Ou Jonas: "Melhor me é morrer do que viver." (Jn 4.3.)
Ou já escutou as palavras de Jesus no jardim, quando estava orando em agonia? "A minha alma está profundamente triste até a morte." (Mt 26.38.) Existem melhores exemplos de depressão — uma depressão que quase faz a pessoa desesperar-se da vida? Muitos dos salmos que abordam essa questão de depressão falam do semblante, do rosto da pessoa, e como esses trechos são exatos em suas descrições! O indivíduo que está deprimido e desanimado tem um rosto muito infeliz. Tem uma expressão de perturbação, infelicida­de, preocupação, como se a vida estivesse colocando o peso do mundo todo em seus ombros.
Outro sintoma de depressão são as lágrimas. "As minhas lágrimas têm sido o meu alimento dia e noite" (SI 42.3), diz o salmista. Esta frase contém uma decla­ração bastante acurada do ponto de vista psicológico. A depressão muitas vezes causa perda de apetite. A pessoa simplesmente não tem vontade de comer nada. E como o alimento lhe parece repulsivo, ela passa a viver de lágrimas, em vez de comida. "As minhas lágrimas têm sido o meu alimento." O que acontece aí? Não conseguindo parar de chorar, o indivíduo se alimenta do desespero, e, naturalmente, isso intensifi­ca seu estado de depressão.
A Bíblia é muito mais prática conosco e mais cari­dosa também do que alguns de nós, pois ela diz que um cristão pode ficar deprimido. As biografias dos santos também revelam isto. Muitas vezes citamos de João Wesley apenas sua maravilhosa conversão em Alders-gate, mas eu poderia mostrar inúmeras citações que se seguiram a ela, e que parecem anular completamente essa experiência, pois Wesley externou estados de depressão, dúvida e desânimo.
O livro Samuel Logan Brengle, Portrait of a Prophet (Samuel Logan Brengle, retrato de um profeta), narra a história de um grande homem de Deus, do exército
136


de Salvação. Os livros de Brengle, clássicos sobre a santificação, já foram traduzidos em dezenas de lín­guas, e têm sido instrumentos de Deus para levar milhões de pessoas a uma vida mais profunda em Cristo.
Falando de Brengle, Clarence Hall, autor do livro acima citado, escreveu o seguinte: "Depois ele entra­ria numa luta intensa com seus sentimentos, pois sobrevinha-lhe à mente uma melancolia originada em sua própria constituição." O próprio Brengle escreveu o seguinte numa carta: "Meus nervos estavam em frangalhos, despedaçados, esgotados. E sobreveio-me uma depressão e tristeza que nunca tinha experimen­tado antes, embora a depressão seja uma velha conhe­cida minha." Mais tarde, ele recebeu uma pedrada na cabeça, atirada por um bêbedo, sofrendo séria lesão na cabeça. O ferimento se complicou, e isso veio aumentar sua depressão que, como ele mesmo disse, era uma "velha conhecida". E, no entanto, já houve homem mais santo do que Samuel Logan Brengle?
Para podermos resolver o problema da depressão, primeiro temos que reconhecer sua presença. E aquele que quiser ser sincero a respeito de seu lado emocio­nal terá que confessar: "É; a depressão também é uma velha conhecida minha. Entendo o que você está dizen­do."
Mas o que acontece é que muitos negam sua depressão, e assim fazendo aumentam seus proble­mas. Acrescentam à depressão um forte senso de culpa, e assim redobram o problema. Digamos que uma depressão bem grave eqüivaleria a carregar uma tonelada de peso emocional. É mais ou menos essa a sensação que se tem, não é? É horrível ter que carregar uma tonelada nas costas, mas temos forças para isso. Entretanto, quando dizemos: "Estou com essa depressão, então deve haver alguma coisa errada comigo", estamos acrescentando a ela o senso de culpa, e redobrando o peso do fardo. Aí a carga se torna impossível de ser suportada.
Estar deprimido não é necessariamente um sinal de falha espiritual. Pela narrativa das Escrituras vemos
137


que alguns dos casos de depressão mais sérios foram conseqüência de um esgotamento emocional, que se seguiu a um grande triunfo espiritual. Isso aconteceu com Elias, por exemplo. O que aconteceu com ele logo após o momento máximo de sua vida, quando triunfou sobre os profetas de Baal, no monte Carmelo? No instante seguinte, vemo-lo assentado sozinho, debaixo de um zimbro, pedindo a Deus para tirar-lhe a vida. Abraão também passou por uma experiência seme­lhante. E muitos de nós também passamos. Parece que a depressão é o "coice" emocional da natureza. É a pancada que um atirador recebe ao disparar uma arma de grosso calibre. É a reação da natureza, ou talvez o fator de equilíbrio do que CS. Lewis chama de "o princípio da ondulação", na personalidade hu­mana.
Infelizmente, nestas situações, nossos amigos da igreja podem ser os piores inimigos, dando-nos conse­lhos falsos, em desacordo com a realidade. Existem alguns cristãos que compreendem erradamente o pro­blema da depressão. Como eles próprios não se acham muito sujeitos a ela, não entendem as pessoas que sofrem com o problema. Isso pode ser terrível, quando essas duas pessoas são marido e mulher. Quando é a esposa que sofre crises de depressão, às vezes o marido não consegue entender bem as reações dela e suas variações de humor. E a situação pode tornar-se ainda mais séria, se ele se aproveitar disso para impor-lhe um fardo espiritual. Ou a mulher pode agir assim com o marido, se a situação for invertida.
Ninguém deve supor que, como nunca sofre de estados depressivos, é mais espiritual que os outros. C. S. Lewis afirmou certa vez que a metade das virtudes que atribuímos a nós mesmos não passam de uma questão de temperamento e constituição própria, e não de alta espiritualidade.
Depressão e Senso de Culpa
Existe um tipo de depressão que pode ser resultan­te de um sentimento de culpa por um pecado cometido,
138


por uma desobediência e transgressão conscientes. Entretanto, não é deste tipo de depressão que estou falando aqui. Alguém pode perguntar: "Como posso saber quando a depressão vem do pecado?" É uma ótima pergunta, principalmente se essa pessoa é per-feicionista, e tem uma consciência ultra-sensível, e sofre a tirania do dever, ou se acha sob uma constante sensação de intranqüilidade, aflição e condenação. Quero citar aqui um princípio de ordem geral que pode ser muito proveitoso. Um sentimento de culpa específi­co, concreto, que podemos relacionar a determinado ato ou atitude, geralmente é verdadeiro e aceitável. Pois as emoções que se seguem a uma transgressão podem ser um verdadeiro senso de culpa e uma verdadeira depressão.
Entretanto, uma sensação vaga e geral de auto-acusação, sentimentos de autocondenação e aflição que não podem ser atribuídos a pecados específicos — geralmente são sinais de falsa culpa ou apenas de uma depressão que tem origem em problemas emocionais. O pecado pode levar uma pessoa à depressão, mas nem toda depressão provém de pecado. As raízes da depressão podem ser muito profundas e bastante complicadas, e tão complexas quanto as mágoas da infância e cicatrizes emocionais que as pessoas levam para os anos da maturidade.
Depressão e Personalidade
A depressão está relacionada com a estrutura da personalidade, com a constituição física, com as rea­ções químicas do corpo, com o funcionamento das glândulas, com a formação emocional das pessoas e com os conceitos emocionais adquiridos. Precisamos entender e aceitar isto. Se tivéssemos bom-senso para viver como diz um velho poeminha infantil, nos sairía­mos muito melhor no relacionamento com os outros:
Jack Sprat não comia gordura;
Sua mulher não comia carne magra;
Então os dois juntos
Davam cabo da comida.
139


Esse versinho contém uma análise incrivelmente profunda da personalidade humana, acredite ou não. Jack Sprat e sua mulher são totalmente diferentes em sua constituição orgânica. Não podemos forçá-los a comer as mesmas coisas, ou a viver da mesma manei­ra. Isso representaria uma violação de sua personali­dade. Ambos são seres humanos muito preciosos, e podemos supor que se amam muito, embora tenham constituições físicas diferentes. Eu gostaria que um maior número de pastores, professores, evangelitas e principalmente pais entendessem a sabedoria que se acha contida nesse versinho.
Espere aí, dirá alguém. Você está esquecendo
que, quando estamos em Cristo, somos novas criaturas
e que as coisas velhas já passaram. A regeneração e a
santificação não acabam com as velhas diferenças?
E a minha resposta é:
Não! E graças a Deus que não acaba!
O novo nascimento não modifica nosso tempera­mento básico. Ele pode colocar em nosso interior "a disposição de Jesus Cristo", como Oswald Chambers gosta de dizer, mas não muda nosso temperamento básico. O fato de que nos tornamos cristãos não significa que paramos de conviver com nós mesmos da maneira que somos. Paulo, após sua conversão, ainda era quase o mesmo Paulo. Pedro ainda tinha em si muito do antigo Pedro, e João do velho João. Eles não se tornaram outra pessoa. No plano de Deus não existem duas coisas iguais. Não existem dois flocos de neve que sejam exatamente iguais. E através dessa situação, isto é, variedade dentro de uma unidade, Deus revela seus desígnios. Nós todos somos diferentes uns dos outros, em temperamento e na estrutura da personali­dade. Cada um de nós sente as coisas à sua própria maneira; cada um tem suas próprias reações e faz suas interpretações da vida de um modo pessoal.
Paulo nos lembra o seguinte: "Temos, porém, este tesouro em vasos de barro." [2 Co 4.7.) Por natureza e temperamento, algumas pessoas são mais nervosas, apreensivas e se atemorizam com mais facilidade. São indivíduos super-sensíveis, cujas emoções se despertam
140


facilmente e se modificam. Às vezes fico pensando se Paulo não era uma pessoa assim. Apesar de ser tão forte, ele diz que foi a Corinto "em fraqueza, temor e grande tremor" (1 Co 2.3). Parecia ser um rapaz muito tenso, pois fala em "lutas por fora, temores por dentro". (2 Co 7.5.) E isto se aplicava ao jovem pastor Timóteo. Toda a segunda carta a Timóteo parece ter sido escrita por Paulo com objetivo de arrancar o jovem discípulo de sua depressão. O biógrafo de Samuel Brengle o define como "um introvertido por natureza". As pessoas mais extremamente introspecti-vas e sensíveis são as que mais enfretam problemas de depressão.
A causa básica de muitos de nossos estados de­pressivos, muitas vezes, é o fato de não encararmos realisticamente essa depressão. Quem pensa que não existe relação entre o natural (isto é, nosso tempera­mento e a estrutura de nossa personalidade) com o nosso aspecto sobrenatural (isto é, nossa vida espiri­tual) está seriamente enganado. Tanto as emoções como a fé operam através da mesma constituição de personalidade. Deus não nos alcança por vias espe­ciais, que passam de largo por nossa personalidade, ou se desviam dela. Não é através de um funil mágico afixado a um orifício no alto de nossa cabeça que ele derrama sua graça sobre nós. Os aspectos de nossa personalidade que empregamos no exercício da fé são os mesmos pelos quais nossas emoções operam.
Talvez possamos entender isso melhor, se imagi­narmos um desses enormes e caros aparelhos que reúnem num só conjunto um receptor de TV no meio, um toca-discos estéreo e um rádio. Trata-se de um belíssimo móvel. Mas, se um dos transistores da com­plexa aparelhagem queimar, o sistema de som fica mudo. Por quê? Todos os componentes funcionam através dos mesmos mecanismos. Se um dos fios queima aqui, ou um condensador ou transistor estraga ali, os três aparelhos vão ser afetados. Por quê? Porque estão operando através de um mesmo sistema.
Nossas depressões podem ter origem em fontes outras que as puramente espirituais.  Quando elas
141


ocorrem, é sinal de que alguma coisa aconteceu com o nosso "equipamento" orgânico — ou com o organismo físico, ou com o equilíbrio das emoções com a persona­lidade. Algum transistor estragou-se; um dos fios se queimou, e isso afeta até a vida espiritual.
Vejamos novamente as palavras de Samuel Bren-gle, aquele santo homem de Deus, quando fala de si mesmo: "Sobreveio-me uma tristeza e depressão como nunca tinha sentido antes... Parecia que Deus não existia. Parecia que o túmulo era minha meta intermi­nável. A vida perdeu toda a sua glória, seu encanto e significado... E a oração não me trazia nenhum alívio; parecia que eu havia perdido o espírito de oração, o poder de orar." (Portrait of a Prophet.)
Continuando a aplicar a ilustração anterior, sabe­mos que a fonte de energia não apresenta nenhum problema; o amor de Deus ainda estava sendo enviado. A estação de rádio emitia belas músicas e a transmis­sora de televisão também mandava imagens perfeitas, mas o som era um chiado constante, e a imagem estava cheia de "chuviscos". Por quê? Porque alguma coisa estava errada com o aparelho receptor.
Era isto que estava-se passando com Brengle. E veja como ele foi sábio. Apesar do que estava sentindo, reconhecia que Deus ainda se achava ali. Em todas as frases, ele usa a palavra parecia. "Parecia que Deus não existia... Parecia que o túmulo era minha meta." E foi o próprio Brengle quem grifou o termo parecia.
Você já passou por essa experiência de ver suas emoções se modificarem completamente? Quando va­mos dormir, está tudo muito bem. Mas, ao acordarmos no dia seguinte, nada está bem. Não sabemos explicar a razão da mudança. Ontem estávamos alegres; espe­rávamos uma jornada excelente no dia seguinte. Mas alguma coisa aconteceu, e agora nossas reações são diferentes. Nossas sensações, ações e interpretações dos mesmos fatos acontecidos ontem e hoje são total­mente diversas. E não estamos sozinhos. Deus está conosco; mas aquele demoniozinho também está por aí. Satanás está sentado ao lado da cama, pois perce­be nisso uma oportunidade de penetrar em nossa
142


personalidade. Por que? Porque ele pertence ao mun­do espiritual e já está ciente de uma coisa que nós também precisamos aprender: aquilo que afeta o natural afeta também o espiritual. Então ele procura transferir essa depressão do temperamento para o lado espiritual. Satanás sempre quer transformar nos­sa depressão emocional numa derrota espiritual para nós. Ele quer pegar uma emoção "queimada" de nosso aparelho receptor e fazer dela uma fé "queimada". Ele conhece nossas fraquezas bem como a profundidade de nosso espírito, e vem nesse monotrilho e penetra direto no centro de nossa personalidade.
Sabe como Satanás quer nos derrotar? Ele tenta fazer com que sejamos eliminados desse jogo, levando-nos a cometer muitas faltas. Ele quer transformar uma depressão natural do temperamento em derrota espiri­tual, em dúvida e desânimo.
A Aceitação de Nossa Personalidade
Então apelo ao leitor para que aceite sua persona­lidade e reconheça seu temperamento. Depois que introjetamos esta verdade, não mais resistimos à reali­dade de nossa identidade. Paramos de brigar com o nosso temperamento, como se ele fosse um inimigo, e passamos a aceitá-lo como um dom de Deus.
Eu próprio levei muitos anos a lutar contra mim mesmo, tentando ser diferente, brigando com meu temperamento nervoso e tenso, sempre irado contra ele, e procurando ser uma pessoa diferente. O ponto crítico veio no momento em que resolvi aceitar a mim mesmo. Um dia Deus me disse:
— Olhe aqui! Você só dispõe disso que está aí. Não vai receber outra personalidade. Ê melhor aquietar-se e passar a conviver com essa mesmo, e aprender a dar um jeito nela. E tem mais. Se me entregar o seu verdadeiro "eu" — não este super "eu", pois você não é nada disso — se me entregar isso, aí então podere­mos nos dar muito bem, e poderei usá-lo como é.
O primeiro passo no sentido de viver acima das depressões é nos aceitarmos como somos. Isto não
143


significa que seremos dominados por nosso tempera­mento. Após a conversão, quem deve nos controlar é o Espírito Santo. Mas ele só pode habitar em nós em plenitude, se reconhecermos o que somos e o entregar­mos a ele. Embora não possamos modificar nosso temperamento, podemos permitir que ele seja contro­lado pelo Espírito Santo.
Mas deixamos Samuel Brengle lá atrás dominado por uma profunda depressão. Não podemos deixá-lo assim, e nem ao leitor. Diz ele:
"A oração não me trazia nenhum alívio; pare­cia que eu havia perdido o espírito da oração, o poder de orar. Então lembrei que devia dar graças a Deus e louvá-lo, embora não sentisse em mim um espírito de louvor e ação de graças. Minhas emoções estavam aniquiladas — a não ser pela sensação de total depressão e tristeza. Mas assim que passei a dar graças a Deus por aquela provação, ela começou a transformar-se em bênção, a luz principiou a brilhar palidamen-te, e depois foi aumentando, até que afinal dissi­pou as trevas da tristeza. A depressão acabou, e a vida voltou a ser bela e agradável, cheia de maravilhosas bênçãos." (Protrait of a Profhet.)
É isso aí! Brengle diz o seguinte: "Lembrei..." E Paulo escreveu a Timóteo: "Lembra-te..." Amanhã cedo, lembre-se de que o amor de Deus não se baseia em seus sentimentos, nem em sua atuação, e nem mesmo em seu amor por ele. Esse amor está firmado em sua própria fidelidade.O permanente amor de Deus nunca tem fim. Suas misericórdias nunca se acabam. Elas se renovam a cada manhã. "Grande é a tua fidelidade. A minha porção é o Senhor... portanto esperarei nele." (Lm 3.23,24.)
144


"Este precioso tesouro possuímo-lo, por assim dizer, num simples vaso de louça, para que saibamos que o seu maravilhoso poder pertence a Deus, e não a nós. Por todos os lados rodeados de obstáculos, mas nunca embaraçados; confundidos, mas nunca desanimados, perseguidos, mas nunca desamparados; derrubados, mas nunca vencidos... É esta a razão por que nunca desfalecemos, porque se na realidade exteriormente nosso corpo físico vai se desgastando, interiormente nota-se dia n dia uma renovação de vigor e de vida."
(2 Co 4.7-9, 16 — Cartas às Igrejas Novas, j


11
Resolvendo o Problema da Depressão
O fato de reconhecermos sinceramente nossa de­pressão não significa que estamos dando a Deus mais informações a nosso respeito. Ele conhece nossas emo­ções. Ele passou pelas mesmas coisas, na pessoa de seu Filho, quando este percorreu os mesmos caminhos que nós. E está conosco para nos compreender e nos ajudar. Quando reconhecemos e passamos a analisar nossas depressões, podemos tomar as providências seguintes adotando as medidas necessárias para a cura.
Está Vivendo Acima de Sua Capacidade?
Todos nós temos limitações físicas, emocionais e espirituais, e precisamos nos manter dentro desses limites. Você tem dormido o suficiente? Vez por outra somos obrigados a perder horas de sono, e temos reservas de energia das quais podemos tirar as de que necessitamos. Mas, se fizermos dessa exceção nossa regra de vida, isto implicará em que estaremos cons­tantemente cansados. Se você é um dos que agem assim, posso garantir-lhe que sofrerá de depressão crônica, e talvez até de depressão patológica e clínica. Você sentirá o mesmo que aquele homem que disse não estar passando apenas por uma crise de identidade,
147


mas também por uma crise de energia. Ele não sabia quem era e estava cansado demais para procurar saber.
Quero responder a uma pergunta antes mesmo que alguém a faça: não; o fato de uma pessoa estar no serviço cristão não muda essa verdade. Deus não anula suas leis, para favorecer pregadores, missioná­rios, grandes realizadores e obreiros superconsagra-dos. Eles também estão sujeitos às leis que Deus colocou em nosso organismo e constituição emocional. Ninguém pode violar assiduamente estas leis, sem sofrer as conseqüências. Que tipo de fardo você leva nos ombros? Quem você pensa que é, afinal? Deus? Aliás, este é um dos problemas do perfeicionista.
Você está-se alimentando adequadamente, e de maneira correta? Minha sobrinha, que é médica, certa vez esteve fazendo especialização no setor de emer­gência de um hospital. Perguntei-lhe:
O que vocês fazem, quando chega à emergência
uma pessoa deprimida, que tentou o suicídio?
Fiquei bastante surpreso com a resposta que ela me deu.
Algumas vezes a primeira coisa que fazemos é
oferecer-lhe uma boa refeição, na maioria dos casos um
bom bife. Geralmente essas pessoas estão com baixa
taxa de proteína no organismo. Depois ficamos saben­
do que não estavam comendo direito há vários dias. A
taxa de proteína fica muito baixa, e o nível de depres­
são sobe.
Algumas pessoas estão sempre se descuidando do físico, e depois ainda se admiram de estarem deprimi­das.
Você já pensou que este estado depresssivo em que se encontra possa ser um controlador natural que Deus colocou em você? que isso é um recurso para levá-lo a diminuir o ritmo, a equilibrar as emoções, por estar constantemente tentando viver acima de suas possibilidades físicas? Quando esse "feitor", que é o perfeicionismo, o impele a atuar mais e mais, com o senso do dever, você força sua condição emocional, e o resultado disso é uma depressão crônica.
148


Como Estão Suas Reações?
Às vezes, as coisas que nos acontecem são menos importantes que nossas reações a elas. Certas reações podem produzir uma reação em cadeia, conduzindo-nos a uma depressão emocional e espiritual.
Aconteceu alguma coisa que foi como um golpe para o seu ego? Alguém o decepcionou seriamente? Você se esforçou demais e ganhou apenas 9 e não 10? Pode ser que tenha passado por uma experiência desagradável, a família dividida pela morte ou separa­ção. Ou pode ser que tenha rompido com a namorada ou namorado, um problema num nível inferior, mas tão doloroso quanto o outro, nesta fase da vida. Já ouvi muitos jovens deprimidos dizerem para mim:
— Meus amigos estão todos me acusando e falan­do: "Quem é de fato cristão não pode sentir-se assim."
Como podemos ser cruéis com os jovens apresen­tando-lhes um padrão tão fora da realidade! Outra situação que pode causar depressão é sair de casa, deixar ambientes conhecidos, seguros, confortáveis, pessoas conhecidas e enfrentar ambientes novos, des­conhecidos.
Outras vezes sofremos um golpe incomum contra nosso ego, que nos apanha desprevenidos. A batalha maior já foi ganha; tomamos os "tanques", a artilharia pesada, mas, de repente, somos atingidos por um atirador solitário que está escondido no mato. Foi isso que sucedeu com o profeta Elias. Ele derrotou quatro­centos profetas de Baal, numa das mais dramáticas confrontações da História. E depois, um comentário cáustico, um tiro seco, dado por Jezabel, mulher de Acabe, chegou aos seus ouvidos. Disse ela: "Digam àquele profeta que vou infernizar tanto a vida dele, que ao cair do dia ele vai preferir que tivesse morri­do." (Ver 1 Reis 19.2.)
E foi aí que tudo começou. "Se ao cair do sol você não estiver fora da cidade..." Elias estava tão bem disposto, que aquela bala de um atirador o pegou desprevenido. Achava-se esgotado, devido às horas e horas que passara em oração, luta e cansaço. Ao ser
149


atingido pelo tiro de Jezabel, entrou numa depressão suicida. Então Deus aplicou-lhe a técnica do setor de emergência do hospital. Primeiro, mandou alguns cor­vos levarem para ele alimento, com proteína; isso foi seguido de um necessário sono. Depois, então, Deus corrigiu a percepção de Elias: "Meu amigo, você não está sozinho; existem mais 7500 com você. Esqueceu-se disso." Não demorou muito, as emoções e o espírito de Elias tinham voltado ao normal.
Três são as reações básicas que podem nos levar à depressão. São elas indecisão, raiva e um sentimento de injustiça.
1.   Indecisão. Quando precisa tomar uma decisão,
você a adia muitas vezes? Essa é sua maneira normal
de fugir à pressão? Se for, está com um fator gerador
de depressão dentro de si, que acabará destruindo sua
paz de espírito e aumentará sua sensação de estar
aprisionado. Muitas pessoas deprimidas têm uma forte
sensação de impotência:
— Sinto-me como que encurralado, dizem. Não vejo saída para mim.
Você poderia estar utilizando essas energias para tomar a decisão e colocá-la em prática. Uma forma de evitar a depressão é justamente usar essa energia para tomar uma decisão construtiva.
Você adia suas decisões porque tem receio de dar respostas negativas? Porque tem medo de magoar alguém? Existem certas situações que nunca podemos resolver sem magoar alguém. Quando ficamos adiando essa tomada de decisão, acabamos magoando ainda mais as pessoas implicadas e nos tornando deprimi­dos. Você tem medo de dar respostas positivas? Tem medo de aceitar responsabilidades ou correr riscos? Quando nos sentamos e ficamos a olhar para as duas possibilidades e a correr de uma para outra, acaba­mos com a mente dividida. E como diz Tiago, o homem de mente dividida é inconstante em seus caminhos. (Ver Tiago 1.8.) A indecisão é o precursor da depres­são.
2.   Raiva. A mais concisa definição de raiva que
conheço é a seguinte: "A depressão é a raiva congela-
150


da." Quem está sempre às voltas com problemas de depressão provavelmente está com alguma raiva guar­dada. Tão certo como depois do dia vem a noite é o fato de que uma raiva reprimida, não resolvida, ou exterio-rizada inadequadamente gera um estado depressivo.
3. Injustiça. Os perfeicionistas possuem um senso de injustiça bastante desproporcional. Sentem uma necessidade muito forte de consertar os erros do mundo, de acertar tudo, e de arrancar o mato que cresce no meio do trigo. Pois bem; esta necessidade é válida; ela está presente em todos os reformadores, pregadores, missionários; e até certo ponto, deve estar presente em todos os cristãos. Rendido a Deus, purifi­cado e controlado pelo Espírito Santo, este sentimento pode ser um maravilhoso instrumento nas mãos dele, "para divulgar a santidade bíblica e reformar a na­ção", como explicou João Wesley. Mas, se este senti­mento de injustiça for descontrolado, desequilibrado, tendo a impulsioná-lo um problema de raiva não resolvida, ele se torna muito destrutivo, produz de­pressão e intervém no relacionamento com os outros.
É muito raro encontrar-se um perfeicionista depri­mido que também não possua um forte sentimento de injustiça social. A única solução contra as injustiças da vida é o perdão. De um modo geral, quem mais precisa de nosso perdão? Os pais e parentes. Muitas vezes, as raízes de uma depressão acham-se enterra­das no subsolo de nossa vida em família nos primeiros anos. E se não encararmos com toda honestidade essas raízes de raiva, e confrontarmos nossos ressentimen­tos para perdoar aqueles que têm de ser perdoados, estaremos constantemente vivendo numa estufa onde a depressão irá medrar viçosamente.
Um Caso de Perdão
Havia duas irmãs, Mary e Martha, que eram opostas entre si em tudo. Mary era loura, extrovertida e cheia de alegria. Martha era morena, mais calada e muito talentosa. Martha veio procurar-me para acon­selhamento, porque estava iniciando um namoro que
151


considerava o melhor que já tivera em sua vida. Mas esse relacionamento estava trazendo à tona uma por­ção de problemas emocionais, depressão, raiva e muitas acusações contra o rapaz. Ela queria gostar dele e o estava conseguindo, mas às vezes tinha vonta­de de estraçalhá-lo, magoá-lo, e espantava-se ao per­ceber isso. Analisando relacionamentos passados, per­cebeu que seus namoros anteriores tinham sido da mesma forma, e isso a assustava.
Enquanto conversávamos, vieram à baila alguns ressentimentos profundos que ela abrigava, e a moça se pôs a resolvê-los. Algumas de suas mágoas eram contra o pai e a mãe, e ela teve de perdoá-los, para que o amor tomasse o lugar da raiva.
Certo dia, porém, sentimos que o verdadeiro pro­blema de Martha era Mary. Num instante, todas as lembranças de raivas passadas desfilaram pela sua mente. Até onde se recordava, sua vida fora cheia de comparações — feitas pelos pais, professores, amigos, pastores e vizinhos.
Quando nos pusemos a orar para que Deus operas­se uma cura desses traumas, e na medida em que ela ia dizendo a ele que estava disposta a perdoar e ser perdoada, deixando que ele modificasse seus senti­mentos, algo aconteceu. Foi como se o Espírito Santo tivesse aberto uma cortina, e revelado a Martha toda uma série de fatos. Ainda orando, ela começou a chora re dizer:
— O Senhor, estou vendo que tudo que já fiz na vida, tudo que disse, pensei, ou busquei estava sempre relacionado com Mary. Ela tem dominado minha vida; tenho vivido obcecada por ela; parece que ela tomou até o teu lugar na minha existência.
Tudo que Martha fizera — comprar roupas, esco­lher o curso da faculdade, arranjar um namorado ou estabelecer um objetivo — sempre o fizera em compe­tição com Mary. É todas as mágoas ocultas e toda a raiva guardada a tinham escravizado emocionalmente à irmã mais velha. Que luta teve de enfrentar para largar tudo aquilo, para perdoar todas as compara­ções que sempre considerara muito injustas ou favori-
152


tismos, que poderiam ou não ter existido contra ela. E foi uma luta em oração que durou bem mais de uma hora. Ao finai, ela estava exausta e eu também. Mas após essa luta em oração, ela conseguiu perdoar de verdade; e foi liberta da odiosa, competitiva e irada garotinha que estava em seu interior, e que nunca havia crescido, pois fora "congelada".
E a melhor parte da história aconteceu meses depois, quando ela disse:
— Sabe de uma coisa? Eu praticamente nasci de novo. Hoje minhas depressões resultam de mudanças naturais de humor. Não tenho mais aquelas "fossas" negras que costumava ter. E o melhor de tudo é que descobri que sou uma pessoa totalmente diversa da que pensava ser. Estou livre! Agora tenho minhas próprias idéias, meu próprio gosto. Hoje tomo minhas próprias decisões, e estabeleço meus próprios objeti­vos. Estou tão feliz de ser eu mesma!
Até sua expressão facial se modificara, e mais tarde Martha veio a tornar-se uma pessoa completa, li­vre para amar. Por quê? Porque ela se dispusera a en­carar de frente suas mágoas, sua raiva, seu senso de injustiça, e deixara que Deus purificasse tudo.
Você está guardando alguma raiva "congelada" em sua vida? Contra seus pais? Contra familiares? Está com raiva de Deus? Muitas pessoas têm necessidade até de perdoar a Deus, não que ele tenha feito alguma coisa errada, mas porque elas o responsabilizam pelos seus males. Está na hora de olhar de frente os seus verdadeiros sentimentos, e resolvê-los com uma me­lhor compreensão do amor divino.
Talvez você precise perdoar ao seu cônjuge por erros passados. Mas perdoar também implica em estender graça à própria pessoa. Perdoe seu cônjuge por ser como é, isto é, incapaz de satisfazer alguns de seus anseios. Alguns dos mais sérios problemas de depressão no casamento são causados pelo fato de um marido ou esposa pensar: "Mas, Senhor, eu tenho direito de me sentir assim! Tenho que me sentir desse jeito pois ele/ela..." E quando dizemos que temos o direito de nos sentir traídos, ressentidos e enganados,
153


já nos encontramos caminhando para a depressão.
Mas uma pessoa pode ficar deprimida também por guardar raiva contra alguém que se acha em posição de autoridade sobre ela, recusando-se a perdoá-la. Talvez esse indivíduo tenha mesmo cometido um erro, mas temos que perdoar aqueles que Deus, em sua providência, colocou em posição de autoridade sobre nós. Se nos recusarmos a isso, não poderemos nos surpreender se viermos a sofrer crises de depressão.
Escrevendo à igreja de Roma, Paulo disse: "Nada de vinganças, meus queridos irmãos; seja Deus quem vingue as afrontas se quiser. Lembrai-vos do que está escrito: A vingança pertence-me: recompensarei... Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; não te deixes vencer pelo mal. Toma a ofensiva — vence tu o mal com o bem." (Rm 12.19-21 — Cartas às Igrejas Novas.) A correção das injustiças deste mundo e de todas as mágoas que há nele cabem a Deus, e ele diz: "Não se meta em meus assuntos!"
Entretanto, ele nos convida a nos juntarmos a ele no ato de perdoar e amar. "Antes sede uns para com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos outros" e, como Deus diria: "como também Eu em Cristo vos perdoei." (Ef 4.32.) Larguemos essa mania de querer acertar tudo, de desforrar, e adotemos a prática de perdoar e amar.
Quando rendemos a Deus nossa raiva e excessiva sensibilidade para com as injustiças, deixamos de ter problemas de autopiedade, e as depressões diminuem imediatamente.
Lutero e Seamands
Talvez o leitor se surpreenda, se eu lhe disser que Lutero escreveu muita coisa a respeito da depressão. Devido a uma infância infeliz, devido a uma criação muito rígida e excessivamente religiosa, Lutero se via muitas vezes em luta contra a depressão e a auto-ima-gem negativa. E ele apresenta muitas sugestões para a solução deste problema, que ainda hoje são bastante aplicáveis. Desejo apresentar aqui algumas delas, bem
154


como algumas das minhas, das que considero mais eficazes.
1.  Evitar ficar sozinho. Geralmente, quando esta­mos deprimidos, desejamos afastar-nos das pessoas. Nossa vontade é nos retrairmos. Mas essa retração implica em isolamento, o que relacionado com a de­pressão significa alienação. Obrigue-se a buscar a companhia de outras pessoas. Esse é um dos principais pontos em que, mesmo estando deprimidos, podemos tomar uma decisão.
2.          Pedir ajuda de outrem. Durante o período de depressão, nossa percepção das coisas se modifica. Às vezes uma coisinha de nada se torna uma montanha. Mas um amigo leal pode levar-nos a ver a medida exata das coisas, na perspectiva certa. Ninguém pode liber­tar-se de uma depressão esforçando-se para sair dela, assim como não poderia sair de um poço de areia mo­vediça arrancando os cabelos. Procure estar com pes­soas que lhe tragam alegrias, e em situações alegres. Nesse ponto também podemos fazer uma opção defini­tiva.
3.          Cante ou toque alguma coisa. Essa era a única forma pela qual o Rei Saul saía de suas crises de depressão. A harmonia e a beleza das músicas que Davi tocava soerguiam o espírito deprimido de Saul (1 Sm 16.14-23).
4.          Dar graças e louvar a Deus. Todos os santos de todas as épocas estão de acordo sobre esta sugestão. Foi esse o método usado por Samuel Brengle para se libertar. Sempre que ele se sentia incapaz de sentir a presença de Deus ou de orar, dava graças a ele por uma folha de árvore, ou por uma bela asa de um pássaro. Dê graças a Deus pelas coisas simples, pelas coisas de cada dia. Em essência, o que Paulo disse a Timóteo foi: "Lembra-te e sê agradecido." (2 Tm 1.) E para os tessalonicenses, o que ele disse não foi: "Sintam-se gratos por tudo", mas, sim, "Em tudo dai graças" (1 Ts 5.18).
5.          Apoiar-se no poder da Palavra de Deus. Deus pode usar qualquer trecho de sua Palavra para nos trazer  uma   bênção   em   momentos   de   depressão,
155


mas através dos séculos seu povo tem achado que os Salmos são os melhores. Isso acontece porque o salmista é o que melhor conhece toda a gama das emoções depressivas e é o mais vulnerável a elas. Dos 150 salmos, existem 48 que podem nos falar muito ao coração, em momentos de depressão. Os que geral­mente recomendo são os seguintes: 6, 13, 18, 23, 25, 27, 31, 32, 34, 37, 38, 39,40, 42, 43, 46, 51, 55, 62, 63, 69, 71, 73, 77, 84, 86, 90, 91, 94, 95, 103, 104, 107, 110, 118, 121, 123, 124, 130, 138, 139, 141, 142, 143, 146, 147.
A melhor maneira de fazer a leitura é em voz alta. Desse modo, o salmista como que se torna nosso contemporâneo e porta-voz, expressando tanto os seus sentimentos de abandono, desespero e melancolia, como os nossos, e também sua afirmação de fé e esperança em Deus que, espero, sejam as nossas.
6. Esperar con/iantemeníe na presença do Espírito de Deus. Várias e várias vezes o salmista dá o segredo para nos libertarmos de um estado depressivo. Ele diz a si mesmo: "Espera em Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu" (SI 42.5 — Grifo meu.) É a certeza do auxílio de Deus, de sua presença que nos garante a bênção.
Jesus empregou este mesmo conceito básico, quan­do confortava seus discípulos, que se achavam depri­midos, na véspera de sua partida. "E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco... Não vos deixarei ór­fãos, voltarei para vós outros. Ainda por um pouco... vós, porém, me vereis; porque eu vivo." (Jo 14.16,18, 19.)
Li um relato sobre uma cirurgia de coração aberto narrado pelo paciente que se submeteu a ela. Diz ele: "Na véspera do dia da operação, uma enfer­meira muito bonita veio ao meu quarto para conversar comigo. Ela pegou minha mão e disse-me que procurasse sentir seu toque e a segurasse. Achei ótimo!
"— Olha, continuou ela, amanhã, na hora da cirurgia, seu corpo ficará desligado de seu cora-
156


ção, e será mantido com vida através de determi­nados aparelhos. Depois, quando seu coração for religado, e a operação terminar, ao voltar a si, estará em um aposento especial. Mas deverá ficar imóvel ainda umas seis horas. Talvez não consiga se mover nem falar, e nem mesmo abrir os olhos, mas estará perfeitamente consciente e ou­virá tudo e saberá tudo que se passa à sua volta. Nestas seis horas ficarei ao seu lado, e vou segurar sua mão exatamente como estou fazendo agora. Ficarei junto de você, até que se recupere plenamente. Embora se sinta totalmente desam­parado, ao sentir o toque de minha mão, saberá que não sairei do seu lado nem um instante.
"E aconteceu exatamente como ela dissera. Acordei e não pude fazer nada. Mas senti a mão dela nas minhas durante um longo tempo. E isso foi muito importante para mim."
A palavra que Jesus mais empregou para designar a presença do Espírito Santo, por ele prometido, foi Paráclito — "aquele que é chamado para estar ao lado". Grave essas palavras em sua mente repetindo-as bem, até estarem tão fixadas ali que mesmo na pior depressão você fique consciente de que ele está ao seu lado, não importa o que sinta.
Percebendo, Jesus, que desejavam interrogá-lo, perguntou-lhes. Indagais entre vós a respeito disto que vos disse: Um pouco, e não me vereis, e outra vez um pouco, e ver-me-eis? Em verdade, em verdade eu vos digo que chorareis e vos lamentareis, e o mundo se alegrará; vós ficareis tristes, mas a vossa tristeza se converterá em alegria. ... Assim também agora vós tendes triste­za; mas outra vez vos verei; o vosso coração se alegrará, e a vossa alegria ninguém poderá tirar. Naquele dia nada me perguntareis. Em verdade, em verdade vos digo, se pedirdes alguma cousa ao Pai, ele vo-la concederá em meu nome." (Jo 16.19-20, 22-23.)
157


"Porque sabemos que toda a criação a um só tempo geme e suporta angústias até agora. E não somente eia, mas também nós que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguar­dando a adoção de Filho, a redenção do nosso corpo.
Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira com gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os corações sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de Deus é que ele intercede pelos santos. Sabemos que todas as cousas coope­ram para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito."
(Rm 8.22-23, 26-28.]


12
Restaurado Para Ser Bênção
Agora chegamos a um ponto muito importante do processo de cura, talvez o mais importante, pois revela o poder restaurador de Deus em seu triunfo máximo — seu poder para transformar o sofrimento humano em bênção para o homem e glória para seu nome.
Já analisamos vários tipos de graça. Vamos exami­nar agora o que denomino graça recicladora. Certa vez visitei uma cidade onde havia uma grande opera­ção de reciclagem de lixo. Nesta usina de reciclagem, o lixo era transformado em combustível para produ­ção de energia. Num processo semelhante, a graça recicladora de Deus transforma nossas fraquezas, nos­sas emoções doentes e todo o lixo que há em nossa vida em meios de crescimento espiritual e instrumentos úteis em seu serviço. Assim essas coisas deixam de ser maldições e passam a ser bênçãos.
Nenhum outro trecho das Escrituras aborda essa questão de modo mais belo e profundo, que o texto de Romanos 8.18-28. Embora esta passagem certamente tenha uma aplicação mais ampla, desejo aplicá-la aqui à maneira como Deus pode transformar pessoas que estão sofrendo em bênção para outros.
Paulo inicia reconhecendo que vivemos num mundo caído, imperfeito, cheio de sofrimento. Mas logo al­guém poderá objetar:
159


— Já estou cansado desses pregadores sempre dizendo isso. E por que tem que haver tanto sofrimento no mundo?
A palavra central deste protesto é mundo, e essa é precisamente a mensagem de Paulo. Sofremos porque estamos neste mundo, e não em um mundo de sonhos, onde gostaríamos de viver, em uma utopia, que gosta­ríamos de criar para nela vivermos. Vivemos neste mundo — numa época que se seguiu à queda do ho­mem, no lado externo do Éden, deste paraíso perdido, onde o pecado entrou pela decisão dos filhos de Deus. Vivemos neste mundo, onde o projeto original de Deus, que era perfeito, foi manchado, maculado, desfigura­do, mutilado pelo mal. Estamos neste mundo, onde em vez de termos a perfeita vontade de Deus, muitas vezes — ou talvez sempre — temos que aceitar sua vontade conciliatória. O que Paulo realmente quer dizer é: "Encarem a realidade! Não podemos voltar atrás no tempo e regressar ao período anterior à queda; não podemos viver num mundo de sonhos." E diz também que todo este mundo, toda a criação, desde os seres inanimados até o homem, é defeituosa. O mundo está sofrendo, à espera de um novo nascimento, de uma redenção final para a natureza e a humanidade, na qual sejamos novas criaturas, com novos corpos e mentes, e tudo volte a ser perfeito.
Paulo não estava dizendo que Deus precisa de nossos pecados e fraquezas, falhas e erros para operar seus desígnios e sua vontade neste mundo; não. Mas neste mundo caído, eles são quase que as únicas coisas através das quais ele pode operar para realizar sua vontade providencial, conciliatória. Se pudésse­mos descobrir a origem de todos os traumas humanos, de todos os sofrimentos, veríamos que, em última análise, eles são conseqüência do pecado de alguém, talvez de pessoas que viveram há várias gerações. Se pudéssemos voltar bem atrás para descobrir a origem de um sofrimento, veríamos que o que chega até nós como fraqueza e trauma emocional foi sendo transmi­tido de uma geração a outra por meio de gens imperfei­tos, criação errada e atuação imperfeita.
160


Muitas vezes, quando as pessoas me relatam histó­rias de sofrimentos e mágoas, elas interrompem as queixas e dizem:
— Uma coisa que me ajudou muito foi conhecer os pais dele (ou dela), ou os avós, os familiares. Fiquei sabendo de tudo que aconteceu com ele, e como ficou traumatizado e aniquilado. Aí comecei a entendê-lo melhor, e a ter compaixão dele.
Sempre me alegro ao ouvir isso, pois sei que a compaixão pode trazer consigo aceitação, e a aceita­ção pode se transformar em amor.
Aquele que Está ao Nosso Lado
Paulo aplicou essa profunda verdade teológica a um aspecto muito prático — o de nossos traumas emocionais e recalques. "O Espírito semelhantemente nos assiste em nossa fraqueza." (Rm 8.26.) Graças a Deus! Ele não nos deixa a lutar sozinhos. Não estamos abandonados à própria sorte, forçados a utilizar ape­nas nossos parcos recursos, para de alguma forma atravessarmos essa confusão toda, levando vidas fra­cassadas. Não! Nosso Médico ferido, nosso Sumo Sacerdote, Jesus Cristo pode "compadecer-se das nos­sas fraquezas". Jesus, o Filho de Deus, identificou-se conosco, seres humanos, quando se tornou o Filho do homem. Ele não apenas conhece nossas fraquezas, mas também nossos sentimentos. Ele compreende bem a dor da rejeição, a aflição causada pela separação, o pavor da solidão e do abandono, as nuvens negras da depressão. Ele entende, conhece e sente essas enfer­midades, essas adversidades e fraquezas. Ele é nosso Médico ferido, aquele que foi "ferido pelas nossas transgressões", e que levou sobre si nossas iniqüida-des e fraquezas.
Cristo é o nosso Médico ferido; ele compreende bem nosso sofrimento. Por isso, quando se preparava para deixar este mundo, prometeu que não deixaria seus amigos sós, mas voltaria para eles enviando-lhes o Consolador, o Paráclito. (Ver João 14.16-18.) O termo
161


para significa "ao lado", e kaleo significa "chamar". "Eu vos enviarei uma Pessoa a quem vocês poderão invocar, que virá para estar ao lado de vocês e os ajudará em suas fraquezas."
Vejamos a palavra grega que dá o termo ajudar. Ela consiste da junção de três vocábulos: sun "ao lado de, com"; anti — "no lado oposto"; e lambano — "agarrar, segurar". Quando reunimos todos eles te­mos sunantilambanotai, que significa "segurar junta­mente conosco a outra ponta". Você já vibrou com uma palavra grega? Pois devia, quando pensasse nesta. "Eu lhes enviarei um Paráclito que vem ficar ao seu lado quando o chamarem, e que irá segurar, juntamente com vocês, o outro lado do fardo."
Será proveitoso fazer uma análise ainda mais deta­lhada dessas palavras, pois este termo se acha no mo­do indicativo e representa um fato. Está na voz media­na, indicando que o Espírito Santo está realizando a ação, e no tempo presente, que fala de uma ação habi­tual e contínua. Ele está sempre ali.
Essa é então uma das grandes realizações do Paráclito consolador e conselheiro — ele está sempre pronto a colocar-se do outro lado de nossas fraquezas destrutivas, traumas emocionais e recalques doloro­sos. E se formos imperfeitos em nossa atuação, se estivermos traumatizados, ele não nos abandona por isso. Ele é exatamente o contrário da caricatura errada que o perfeicionista faz de Deus — o Deus que está sempre lhe sussurrando:
— Ora, vamos lá! Esforce um pouco mais! Você tem condições de ser melhor do que está sendo! Quando chegar à altura do que desejo, então eu o amarei!
O Paráclito é o Deus que compreende, que enxerga que estamos a carregar um fardo excessivamente pesado para nós, que percebe que, por nós mesmos, não conseguiremos "chegar lá", e por isso vem para o nosso lado, pega o fardo pesado, com todos os sofri­mentos que ele traz, e nos ajuda a carregá-lo, capaci-tando-nos a suportar nossas fraquezas destrutivas. Que quadro maravilhoso!
Este verbo é encontrado em apenas mais um texto
162


do Novo Testamento, em Lucas 10.40. Maria estava sentada aos pés de Jesus, desfrutando de seus ensinos e seu amor. Marta estava correndo de um lado para outro na cozinha, fazendo sozinha todo o trabalho da casa. Mas também estava fervilhando em fogo brando, e ficando mais irritada a cada minuto que passava. Afinal, ela irrompeu à porta da sala, onde Jesus e Maria se achavam, e explodiu:
— Jesus, quer por favor falar com Maria para vir aqui e sunantilambano a mim? Diga-lhe para vir aqui e fazer a parte dela, segurar o outro lado. Não consigo fazer tudo sozinha."
Esta é a figura dada por esta palavra: o Espírito Santo a ajudar-nos, segurando a outra ponta.
A boa-nova do evangelho para as pessoas que sofrem com traumas emocionais é a seguinte:
     Deus nos ama, não porque sejamos bons, mas porque precisamos de seu amor para sermos bons.
     Cristo, nosso Sumo Sacerdote, levou sobre si nossos pecados e fraquezas, não porque fôssemos bons, mas porque precisamos de seu amor e aceitação para nos tornarmos bons.
     O Espírito Santo nos oferece sua contínua pre­sença e poder, que nos capacitam, não porque somos bons, mas porque precisamos dele para sermos bons. Que verdade maravilhosa!
Temos aqui a provisão completa da graça de Deus. O amor incondicional e a aceitação do Pai; a completa identificação do Filho conosco, como nosso sumo sa­cerdote e médico ferido, sua identificação com nossos pecados e fraquezas; e a assistência diária, terna e inspiradora do Espírito.
E como o Espírito nos ajuda em meio a essas fraquezas que tanto nos prejudicam? "Porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós." (Rm 8.26.) Somente o Espírito Santo conhece realmente a mente de Deus. E só ele nos compreende de verdade. E como ele conhece o coração de Deus, e conhece o nosso também, só ele pode unir esses dois lados. E assim o Espírito intercede por nós com gemidos profundos demais para serem expressos.
163



Ele intercede por nós em acordo com a vontade de Deus.
"Aquele que sonda os corações sabe qual é a mente do Espírito." (V. 27.) Se traduzirmos a palavra cora­ções aqui por "subconsciente", poderemos entender melhor o que Paulo está dizendo. É no mais profundo recanto de nosso ser — onde estão armazenadas nossas lembranças, onde nossas mágoas e sofrimentos estão enterrados tão profundamente que uma oração comum não as alcança, nem mesmo uma oração audí­vel — é ali que ocorre a cura dos traumas emocionais, pela operação do Espírito Santo. É ali que atua o suavizante Bálsamo de Gileade, limpando nossos feri­mentos, trazendo perdão, consertando "os estragos" e derramando o amor de Deus para efetuar a cura. O Paráclito não apenas vem para ficar ao nosso lado, mas também dentro de nós.
Mas o melhor vem agora! Muitas vezes citamos Romanos 8.28 fora de seu contexto. Na verdade, ele é a etapa final de todo um processo corretivo. "Sabemos que todas as cousas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus." Uma versão moderna deste texto diz assim: "Sabemos que Deus faz todas as coisas cooperarem para o bem daqueles que amam a Deus." A primeira versão citada realmente pode ser engano­sa: "Todas as coisas cooperam..." Infelizmente sabe­mos que as coisas não cooperam; pelo contrário, elas podem até cooperar contra nós. Mas Deus opera nas coisas, fazendo com que as circunstâncias resultem em bem para nós. Isso modifica tudo, pois transfere o agente da ação, do acaso, para o Pai; das coisas e da casualidade, para Deus, uma Pessoa cheia de amor e altos propósitos. Esta é a parte mais notável de todo esse processo de restauração — o fato de que Deus faz com que todas as coisas cooperem para o bem; que ele transforma lembranças dolorosas em auxílio para ou­tros — esse é o maior dos milagres.
Sem isso, a restauração não poderia ser conside­rada completa, pois a cura total não se restringe apenas ao alívio de recordações dolorosas, a perdoar e ser perdoado de penosos ressentimentos,  e nem
164


mesmo à "reprogramação" de nossa mente. A cura e um milagre da graça recicladora de Deus, que faz com que todas as coisas redundem em bem, que opera uma reciclagem em nossos traumas, tornando-nos sadios e úteis.
Isto não significa que todas essas coisas que estive­mos descrevendo aqui constituíam a vontade de Deus para nós. Deus não é o Criador de todos os eventos, mas é o Senhor de todos eles. Isso quer dizer que tudo que acontece à nossa vida, ele pode usar para o nosso bem, e o usará, se nos rendermos em suas mãos, e permitirmos que ele opere em nossa vida.
Ele não modifica a realidade e a crueza dos males que nos sobrevêm. Humanamente falando, nada pode modificá-los. O mal ainda é o mal, trágico, sem senti­do, e talvez injusto e absurdo. Mas Deus pode modifi­car o significado dele para nossa vida. Deus pode entrelaçá-lo ao projeto e propósito de nossa vida, de modo que tudo esteja dentro do círculo de sua ação redentora e recicladora.
Deus é o grande alquimista que transformará tudo que há em nossa vida em ouro espiritual, se nós assim permitirmos. É ele o Grande Tecelão que pode pegar todos os traumas, todas as mágoas, todas as fraquezas destrutivas, e entrelaçá-las ao seu projeto — mesmo que todos os fios tenham sido preparados por mãos ímpias, ignorantes e tolas.
Quando cooperamos com o Espírito Santo neste processo de oração e cura profundas, Deus não so­mente nos refaz e recondiciona, não somente tece novamente o seu projeto, mas também o recicla para que possamos ajudar a outros. Aí então poderemos olhar para essa vida e dizer: "Isto procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos."
Betty
Betty e seu marido me procuraram para aconselha­mento. Sabia que eram um casal muito dedicado, que estava-se preparando para se dedicar ao ministério e que seu casamento era bastante sólido. Entretanto,
165


ultimamente, estavam tendo algumas dificuldades no relacionamento, e Betty sofria crises de depressão cada vez mais sérias. No primeiro encontro que tive­mos, as lágrimas lhe corriam abundantemente pelo rosto — e ela própria estava surpresa com isto. Pensava que havia parado com o choro havia muitos anos, mas agora parecia que ele estava de volta, e de forma incontrolável, e para constrangimento dela.
Na segunda vez em que veio, Betty pôs-se a contar-me sua história. Os pais tinham sido obrigados a casar-se, pois a mãe ficara grávida dela. Fora um casamento forçado, e Betty o filho indesejado. (E quero abrir um parêntese aqui para dizer que, se esse também é o caso do leitor, precisa resolver isso, acei­tando os fatos como são.)
Quando Betty estava com três anos e meio, a mãe ficou grávida novamente. Entretanto, o pai havia tido um caso com outra mulher, que também ficara grávida mais ou menos na mesma época. Isso causou sérios conflitos na família, terminando com o divórcio. As recordações que Betty tinha de tudo aquilo eram sobremodo claras. Lembrava-se nitidamente do últi­mo dia, quando o pai saíra porta a fora e abandonara o lar. Recordava-se de que estava em seu berço quando aquilo aconteceu, ouvindo a terrível briga e o momento aterrador de sua partida. O acontecimento havia deixado em seu peito como que um nódulo dolo­roso e maligno. Quando estávamos revivendo aquele incidente durante a oração pela sua cura interior, o Senhor nos levou de volta àquele berço.
E ele pode fazer isso, pois o tempo está em suas mãos. Foi ele quem disse: "Antes que Abraão existis­se, eu sou." Qo 8.58.) Nossas lembranças se acham todas na presença daquele que é o Senhor do tempo. E durante esse momento de terapia, Betty soltou um grito de dor, um grito estridente e aflito que estivera encer­rado em seu coração durante muitos anos. Eu lhe disse:
— Betty, se pudesse ter dito alguma coisa a seu pai, naquele momento, o que teria dito?
De repente o Espírito Santo fez reviver em sua
166


memória exatamente o mesmo sentimento daquele instante de total desolação. E ela gritou — Não com sua voz normal de adulta, mas com o choro e os soluços de uma criança de três anos — um apelo ao pai:
Ó papai! Não vai embora, por favor!
E todo o terror e sofrimento experimentados naque­le momento foram externados "com gemidos inexprimí-veis".
Mais tarde, quando orávamos, ocorreu-me que, se expressássemos os gritos de desespero que Cristo soltou na cruz (Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?) com a linguagem de uma criança, teríamos que empregar as mesmas palavras de Betty: "Papai, não vai embora!" E subitamente compreendi também que, por causa dessa experiência que Jesus viveu na cruz, ele compreende muito bem os clamores de milhões de crianças que tantas vezes se ouve hoje em dia:
Papai (ou mamãe) não vai embora!
Mas eles vão. E o Médico ferido ouve esse grito e os compreende, e se emociona com o sofrimento dessas crianças.
Aquela experiência marcou o início de uma cura de alcance profundo para Betty. Contudo, eu ainda que­ria que ela gozasse daquela suprema integridade psicológica de que fala Romanos 8.28. Então conversa­mos sobre o sentido de sua vida, com o objetivo de que ela entendesse isso. Onde estava Deus, quando a vida dela se iniciara? Havia ela aceitado as circunstâncias de seu nascimento, que viera de uma gravidez indese-jada? Disse que não.
Senti que devia indicar-lhe uma tarefa muito estra­nha, uma tarefa que tenho dado poucas vezes em todos os anos em que tenho trabalhado em aconselhamento.
Betty, disse-lhe, vou lhe pedir para fazer uma
coisa, mas gostaria que meditasse e orasse muito
sobre isso. Queria que você tentasse imaginar o mo­
mento exato de sua concepção. Mentalize o instante
em que a célula de seu pai penetrou na célula de sua
mãe e você passou a existir. Foi nesse ponto que você
entrou na história humana. E quando pensar nisso,
167


pergunte-se o seguinte: onde estava Deus nesse mo­mento?
Betty levou muito a sério a tarefa. Uma semana depois, quando nos reunimos de novo, ela me contou o que se passara.
— Sabe de uma coisa? Nos dois ou três primeiros dias, achei tudo isso uma idéia muito maluca. A única coisa que eu conseguia pensar era num versículo das Escrituras que me vinha constantemente à lembrança: "Em pecado me concebeu minha mãe." Mais ou menos no terceiro dia, quando estava pensando no assunto, não sem certa relutância, comecei a chorar. Mas era um choro diferente do normal. Uma oração parecia estar brotando do fundo do meu coração, e eu a escrevi.
Em seguida, entregou-me a oração e, com permis­são dela, eu a transcrevo aqui.
"O Deus, meu coração salta de alegria ao lem­brar que tu, meu Pai de amor, nunca me abando-naste. Estavas presente no momento em que fui concebida, pela lascívia humana. E mesmo na­quele momento tu me olhaste com amor de Pai. E quando ainda estava no ventre de minha mãe, tu pensaste em mim e, em tua grande sabedoria, fizeste planos sobre como eu deveria ser, moldan-do-me à tua imagem.
"Sabendo do sofrimento que me aguardava, deste-me uma mente que me manteria fora do alcance da dor, até que chegasse o momento por ti mesmo determinado, em que eu seria curada.
"Tu estavas presente quando minha mãe me deu à luz, contemplando-me com ternura, ocu­pando o lugar vazio deixado por meu pai. Tu estavas presente quando derramei as lágrimas amargas de uma criança que acaba de ser aban­donada pelo pai. Tu estavas segurando-me ao colo, durante esse tempo todo, embalando-me com teu amor consolador.
"Ah, por que não fiquei ciente de tua presen­ça? Mesmo quando criança eu era cega ao teu
168


amor, incapaz de conhecê-lo em toda a sua pro­fundidade e largura.
"Ó Deus, meu querido Pai, meu coração havia-se congelado, mas a luz de teu amor está come­çando a aquecê-lo. Estou novamente sendo capaz de sentir as coisas. Tu iniciaste um milagre em mim. Confio em ti e te louvo. Tua bondade e misericórdia têm estado comigo sempre. Teu amor nunca me abandonou. E agora os olhos de minha alma se abriram, e te vejo como realmente és, meu verdadeiro Pai. Conheço teu amor e estou pronta a perdoar. Senhor, torna completa a mi­nha cura."
Betty alcançara a etapa final de cura, em que Deus recebeu todas as dores que ela lhe entregara, e a curou com seu amor restaurador e reciclador. E depois ele ainda deu o toque final: fez dela uma bênção para os outros.
Certo domingo pela manhã, fiz algo que raramente faço. Com permissão de Betty, narrei a história trans­crita acima. Modifiquei alguns detalhes que poderia identificá-la, pois sabia que ela estaria presente. Ao final do culto convidei para vir à frente as pessoas que desejassem oração por um problema emocional. Vá­rias pessoas vieram. Perto de Betty estava sentada uma amiga sua, que começou a chorar convulsivamente durante o apelo. Aproximou-se e perguntou se ela gostaria que orasse por ela. A senhora protestou hesitante, afirmando que seus problemas eram por demais profundos e que ela não iria entender.
Nesse momento, Betty começou a passar por uma luta interior. Ela percebia o que Deus estava-lhe pedindo para fazer, e achava que ele estava pedindo demais. Mas instantes depois compreendeu o que deveria fazer. Inclinou-se para a amiga e sussurou-lhe no ouvido:
— Não se espante, mas fui eu quem deu permissão ao Dr. Seamands para narrar esta história, sabe? Eu sou a Betty!
A amiga fitou-a com incredulidade.
169


Sou eu mesma, repetiu ela. Sou a Betty, e creio
que posso compreender seu problema e talvez ajudá-la.
As duas vieram à frente juntas e passaram um longo tempo ali conversando e orando. Assim teve início a restauração emocional da amiga de Betty. Depois, quando esta me narrou isso, tinha na fisiono­mia a expressão luminosa de um abençoado que se tornou bênção. Deus havia reciclado seus sofrimentos, curando-os e transformando-os em instrumento de bênção para outros.
O Outro que Está ao Lado
Muitos pensam que só podemos ajudar a outros com nossas próprias forças, e que só podemos real­mente fazê-lo depois que formos vitoriosos, e só pode­mos dar a Deus a maior glória com nossas forças pessoais. Mas Paulo disse que há apenas duas coisas nas quais podemos nos gloriar. A primeira é a cruz de Cristo (Gl 6.14), talvez o ponto máximo da fraqueza em toda a história humana, a última palavra em injustiça, que Deus transformou em salvação para o mundo todo. A outra coisa na qual podemos nos gloriar é em nossas fraquezas e enfermidades (2 Co 12.9,10). Por quê? Porque o poder de Deus se aperfeiçoa nas fraquezas. Somos chamados a ser bênção para outros, não a partir de nossa força, mas de nossa fraqueza.
Muitas vezes, no gabinete de aconselhamento, as pessoas falam de suas profundas perplexidades e problemas. E sempre somos tentados a impressioná-las, a ser aquele conselheiro sábio, a partir da força pessoal, e dar um conselho precioso.
Mas aí o Espírito Santo sussurra ao meu ouvido:
Davi, fale a seu respeito com essa pessoa. Ele
não é um "cliente", não é um "caso" (detesto este
termo). É um ser humano que está sofrendo. Revele a
ele suas fraquezas, seus traumas emocionais e suas
lutas. Diga-lhe como o Espírito Santo o ajudou em suas
fraquezas.
Muitas vezes, interiormente, eu resisto ao Espírito e discuto com ele.
170


— Mas, Senhor, não posso fazer isso. Ele me procurou como seu pastor. Ele me respeita e me vê co­mo uma pessoa forte e sábia, que tem solução para tudo.
Mas afinal sempre acabo me rendendo à pressão suave que ele exerce sobre mim e sigo suas instruções. E todas as vezes que o faço, Deus tem ali a oportunida­de de exercitar seu poder, e seu poder se aperfeiçoa em minha fraqueza, cumprindo assim sua promessa contida em 2 Coríntios 12.9,10.
E várias vezes tenho sido participante dessas pro­fundas experiências de restauração de vidas, em que Deus faz a reciclagem de traumas, sofrimentos e fraquezas, e depois os usa para o bem de alguém e para a sua glória.
E essas experiências que tenho tido, tenho visto também em outras pessoas. E acredito que você tam­bém possa tê-las.

171





Nenhum comentário:

Postar um comentário